Andava a passear pela ágora e vi uma edição de Os Lusíadas na montra. Luís Vaz de Camões é um poeta que sempre me fascinou. Vicissitudes na vida (leia-se «falta de professor», situação comum na minha época) fizeram com que não o estudasse nem na escola nem na faculdade. Muitos colegas comentavam o horror que tinham sido as aulas em que tiveram de dividir as orações daquele grande poema (método que já não se recomendava, mas que muitos professores ainda adotavam) mas eu não passei por isso. Como não gosto de ler por obrigação, normalmente fazia no ano anterior as leituras obrigatórias do ano seguinte: foi assim que li Os Lusíadas, quando andava no 8º ano (e Os Maias, quando andava no 10º. Infelizmente, também nunca o estudei, pelas mesmas vicissitudes mencionadas anteriormente).
Ler Os Lusíadas desacompanhada, mesmo com o apoio de uma edição bastante anotada, não será a mesma coisa do que com um/a professor/a, mas resultou, porque fiquei a gostar muito do poeta.
Na universidade, quiseram os deuses que também não estudasse esta obra, porque a docente de Literatura Portuguesa que me calhou em sorte, a querida e malograda Margarida Vieira Mendes, tinha a lírica, no seu programa, e não a épica. E em boa hora isso aconteceu, porque a lírica camoniana é maravilhosa. Como tínhamos de a ler toda, e a quantidade de sonetos, redondilhas, endechas, trovas, éclogas, elegias, cantigas nos parecia infindável, a professora recomendou-nos que aproveitássemos as refeições para pôr a leitura em dia. E eu cumpri: naquele já longínquo ano de 1986, acompanhei os meus pequenos-almoços com sonetos, deixando as outras formas poéticas para o almoço e jantar.
«Transforma-se o amador na cousa amada»
Muitos foram os poemas de Camões que me interpelaram, mas este destacou-se: «Transforma-se o amador na cousa amada/ por virtude de muito imaginar; / não tenho, logo, mais que desejar,/ pois em mim tenho a parte desejada//». Houve várias questões que estes versos me colocaram: poderemos mesmo ser tão empáticos com o outro, como o poema sugere? Será que o querermos muito que algo aconteça (o «muito imaginar») será suficiente? Será que o que temos em nós é apenas o amor que podemos dar ao outro?
Não sei porquê, mas fiquei a pensar nesta ideia de que amar nos transforma no objeto do amor. Ainda jovem, o meu conhecimento apenas empírico do mundo dizia-me que (alguns) casais ficavam parecidos com o tempo. Era o que eu via, principalmente entre aqueles que (parecia que) se davam bem. Talvez não fossem mesmo semelhantes, mas havia qualquer coisa que me fazia pensar que seriam família, quando não tinham laços de consanguinidade. Vim a saber, mais tarde, quando li alguns estudos feitos sobre este assunto, que os casais, com os anos de convívio, tendem a imitar expressões um do outro, e, ainda, que as pessoas têm tendência a escolher para parceiras aquelas que se parecem consigo ou com os seus pais.
Não sei se assim é, mas na literatura, encontrei um exemplo, do qual nunca me esqueci, do que achei que Camões queria dizer. Para escrever este artigo, fui procurar o livro, um pouco receosa de que a minha memória me tivesse atraiçoado. Localizei Michel Tournier e tirei da estante Gaspar, Belchior e Baltazar (Ed. Dom Quixote, 1992, 3º ed.). A frase de que me recordava dizia: «A Criança tornou-se negra, para melhor acolher Gaspar, o rei negro». Não andava longe…
Diz Gaspar (p. 184): «Mas quando me inclinei sobre a manjedoura para adorar a Criança, que vi eu? Um bebé negro de cabelos crespos, com um pequeno nariz achatado, um bebé em tudo semelhante às crianças africanas do meu país! (…) A criança na Manjedoura tornou-se negra para melhor acolher Gaspar, o rei mago africano. Há aqui algo mais do que em todas as histórias de amor que eu conheço. Esta imagem exemplar manda que nos façamos semelhantes àqueles que amamos, que vejamos com os seus olhos, que falemos a sua língua materna, que os respeitemos, palavra que significa olhar duas vezes. Foi assim que se deu a elevação do prazer, da alegria e da felicidade a este poder superior que tem o nome de amor».
Transformações por amor
Nem todas as transformações o são por amor. A mitologia mostra-nos vários casos de metamorfoses que acontecem por as personagens quererem, precisamente, fugir do amor. Uma das mais conhecidas é a de Dafne, a ninfa por quem Apolo se apaixonou, mas que não lhe correspondia. De modo a não ter de se submeter a um amor indesejado, Dafne foge do deus, pedindo a seu pai, um deus-rio, que a salve. O pai ouve a sua súplica e transforma-a em loureiro. Apolo passa a usar uma coroa feita das folhas desta árvore, como forma de se lembrar dela.
Mas havia muitas transformações por amor. Ovídio, no livro 8 das Metamorfoses (cito a tradução de Domingos Lucas Dias, para a Vega), conta uma história muito terna. Um velho casal, Báucis e Filémon, recebeu, em sua casa, Júpiter e Mercúrio disfarçados. Os deuses compensaram a sua bondade para com estranhos, poupando-os a um dilúvio que dizimou a população vizinha. A sua casa transformou-se num templo («Os esteios viram colunas, o colmo/ vai-se tornando amarelo, o tecto parece de ouro, cinzeladas/ as portas, e o chão coberto a mármore» – vv. 700-3), eles passam a sacerdotes e Filémon pede às divindades (vv. 708-720): «“E, uma vez que vivemos a vida/ harmoniosamente, que a mesma hora nos leve a ambos/ e que eu nunca veja a tumba/ da minha mulher, nem ela me enterre a mim”/ (…) Báucis vê Filémon cobrir-se de folhas,/ e o velho Filémon vê as folhas a cobrirem Báucis. Já/ sobre a face de ambos se alargava a copa; enquanto podiam,/ iam conversando. Disseram um ao outro simultaneamente –/ “Adeus, meu amor!” E logo a casca lhes cobre e lhes esconde/ a face. Ainda hoje o habitante da Bitínia mostra ali dois/ troncos vizinhos, nascido cada um de seu corpo».
Ou talvez pudessem dizer, como Camões, «não tenho, logo, mais que desejar,/ pois em mim tenho a parte desejada».
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Março)