É um mergulho profundo num mar de histórias materializadas a partir das narrativas contidas nos objetos mais díspares e inimagináveis. Intitulado “Vozes ao alto!”, o livro a lançar esta sexta-feira na festa do “Avante!” propõe-se, com base num intenso trabalho de recolha de objetos, alguns óbvios, outros de presença e importância inesperada, contar os múltiplos caminhos seguidos pela vivência dos comunistas portugueses durante um século.
Dividido em três períodos distintos, começa em 1921 e abrange os primeiros cinco anos de existência do PCP, numa legalidade precária que corresponde à crise final da Primeira República. Segue pelos 48 anos de resistência na clandestinidade, entre 1926 e 1974. E conclui com os já 45 anos de vivência em regime democrático.
Projeto coletivo concretizado através de financiamento colaborativo ao qual aderiram centenas de pessoas através das redes sociais, o livro foi elaborado com fotografias dos premiados Adriano Miranda, Egídio Santos e Paulo Pimenta, e textos de Cristina Nogueira, doutorada em Ciências da Educação e investigadora de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, Isabel Nogueira, psicóloga, Maria Alice Samara, doutorada em História Institucional e Política Contemporânea, e Vanessa de Almeida, licenciada em História e com mestrado em Antropologia. Não são todos comunistas, ou militantes do PCP. Como escreve o historiador Manuel Loff no prefácio, “não é preciso ser-se militante comunista para partilhar uma parte da cultura da sociabilidade comunista, mesmo que apenas, como fazem todas/os estas/es autoras/es, na afirmação pública do reconhecimento das motivações e dos valores que fundamentaram a conceção e a preservação de cada um destes objetos”.
UM VESTIDO EM CAXIAS
Começaram a envolver-se nesta aventura aos poucos, inspirados por fragmentos, ideias dispersas, curtas passagens de leituras diversas, como quando alguém chamada Conceição disse ter feito um vestido em Caxias. Ou a partir dos múltiplos significados e inimaginável importância de um objeto tão comum como uma caixa de fósforos, percepcionada durante a leitura de um artigo assinado por uma “Leonor”, publicado em “A Voz dos Camaradas”.
Depois começam as perguntas. Por exemplo, porque era tão importante uma caixa de fósforos numa casa clandestina? “Leonor” era Margarida Tengarrinha e dá a resposta no tal artigo, que se intitulava “A caixa de fósforos do Partido”. Ao referir-se àquele objeto afinal tão discreto, Tengarrinha, citada no livro, escreveu: “Acreditem que isto não é dar excessiva importância aos objetos, nem mesmo querer tornar simbólica uma questão de pormenor. Mas a ‘caixa de fósforos do Partido’ representa ainda hoje para mim a disciplina constante que se educa nas pequenas como nas grandes coisas”.
O PRIMEIRO COMUNICADO
A viagem de um século proporcionada por este livro é impressionante. Abre com a reprodução de uma folha de papel de 104 por 76 centímetros encontrada na Torre do Tombo. É uma proclamação intitulada “Ao País”, data de 1921 e é tido como o primeiro comunicado do PCP. Foi apreendido pela polícia na algibeira de um jovem barbeiro oriundo do Porto, José Carlos Rodrigues Frias, às 7 horas da manhã do dia 13 de março de 1922 numa morada na Calçada de S. Vicente, em Lisboa.
Depois, é um constante navegar por uma verdadeira galáxia de objetos, alguns icónicos, outros apenas reflexo de um quotidiano vernacular. Podem incluir o cartão de militante, datado de 1925 e ainda chamado “bilhete de identidade”, a bandeira do PCP hasteada no Barreiro no dia 28 de fevereiro de 1935, depositada na Torre do Tombo e referente a um processo em que os réus são acusados do crime de “propaganda revolucionária”. Naquele dia, pelas 22h15, é cortada a luz elétrica na vila e impõe-se a escuridão total. Militantes comunistas aproveitam para espalhar materiais de propaganda e são içadas oito bandeiras vermelhas, uma delas de grandes dimensões, no topo da chaminé de 36 metros de altura das Oficinas Gerais dos caminhos de ferro.
UM VIOLINO CONSTRUÍDO NO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
Há objetos inusitados, como um violino construído no campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, por um comunista da Marinha Grande, algures entre 1936 e 1953. Se há um elemento icónico da clandestinidade comunista é a bicicleta utilizada por funcionários nas deslocações pelo país. Também lá está representada, tal como uma das brochuras mais míticas de quantas foram criadas pelo PCP: “Se Fores Preso, Camarada…”. O livro reproduz a primeira edição, de 1947, com capa azul e a foice e o martelo. Não é indicado o autor, mas sabe-se ter sido Álvaro Cunhal a perceber a necessidade absoluta de escrever um texto com recomendações para melhor ser enfrentada a duríssima prova da prisão e tortura. Como se explica no livro, “a leitura e a discussão desta obra eram obrigatórias. Nesta revela-se aquilo que o preso devia esperar, os métodos de tortura aplicados, bem como as alucinações daí resultantes. Descrevem-se os espancamentos ‘durante horas e horas a cavalo-marinho com grossas tábuas’, os ‘apertos de testículos, queimaduras com faíscas elétricas e com cigarros, pancadas brutais nas plantas dos pés descalços’, a tortura do sono, a estátua, assim como a incomunicabilidade”, a representação de papéis pela PIDE, com o polícia bom versus o polícia mau, bem como as permanentes ameaças e calúnias.
Por tudo isto, a brochura termina com um apelo ao orgulho do resistente: “Se fores preso, camarada, e souberes vencer as torturas e as horas difíceis, e se souberes honrar o teu nome de comunista, e se não prestares à polícia fascista, a esses inimigos do povo, quaisquer declarações prejudiciais ao Partido -, sentirás uma profunda alegria pelo teu próprio comportamento, ficarás profundamente satisfeito pela tua firmeza, pela confiança em ti próprio, e pela confiança e consideração do Partido, dos teus camaradas, da classe operária, dos trabalhadores, de todos os portugueses honrados.”
UMA COISA ESTRANHA
Os autores deixam bem claro não pretenderem com este livro elaborar uma história do PCP. Quando muito, serão contributos para uma melhor compreensão do universo comunista ao longo de vários períodos históricos. Na sua diversidade, os objetos representados – e são estes como poderiam ser muitos outros – abrem espaços de reflexão, não apenas para a história do PCP, como para a do mundo em que o partido nasceu, cresceu e se solidificou. Como escreve Manuel Loff, “estes cem anos confundem-se inevitavelmente com a história do país e do mundo em que o PCP existiu e existe, mas para o observador desatento, muito do que aqui se mostra, se explica, se recorda, pode parecer ter uma natureza estranha – porque, á luz da cultura política dos últimos quarenta anos, a clandestinidade é estranha, é estranha a decisão de dedicar uma vida inteira à luta política (quer a clandestina, quer a da democracia, como muitos comunistas, desde há quase meio século dedicam), estranha é a experiência da prisão política, que fica absolutamente longínqua da imaginação que a grande maioria de nós e dos nossos contemporâneos tem do que faz parte do campo do possível, do provável na vida colectiva dos portugueses”.
A HISTÓRIA DE UMA PEDRA DE CALÇADA
Há objetos, sublinha o historiador “que quase marcam a continuidade entre dois ciclos de resistência – a resistência antifascista contra a ditadura e a resistência antifascista face á contrarrevolução. Em ambas esteve o PCP na primeira fila. É aqui que aparece uma pedra da calçada” conservada por um militante de Aveiro como prova material do ataque aos Centros de Trabalho (CT) do PCP perpetrados, sobretudo no norte do país, no Verão Quente de 1975, com destruição de Centros de Trabalho, ataques bombistas, assassinatos.
Esse é um passado, sublinha Loff, “de que quase não se fala quando se faz a história da Revolução Portuguesa. Aquelas pedras da calçada, eram pedras preparadas para matar, como se escreve no livro e constituíam apenas um dos elementos do imenso manancial de artefactos usados, escreve o historiador, pelo sortido mundo da contrarrevolução, “nessa bizarra (mas reveladora) coligação que ia da extrema-direita ao PS, passando pela hierarquia da igreja católica, ex-combatentes organizados e caciques locais”. Tentaram, e em muitos casos conseguiram, destruir “centenas de espaços que os comunistas e militantes de outros partidos e de sindicatos de esquerda tinham transformado nas suas sedes políticas e espaços de convívio”.
O livro tem duas formas de leitura, ou duas capas. A primeira, a azul, abrange a curta existência legal, entre 1921 e 1926, e o período de clandestinidade, de 1926 a 1974. A capa vermelha remete para o tempo da liberdade, entre 1974 e 2021.
Fotogaleria
A máquina de escrever silenciosa era um dos objetos cruciais numa casa clandestina. Nada podia lá existir suscetível de identificar os ocupantes. Muito menos ecoarem para o exterior ruídos suspeitos. Como escrever à máquina, que era inserida numa caixa de madeira com tampa amovível e um visor de vidro. Ficava acolchoada para impedir os ruídos. De fora estava apenas o teclado, assente numa base também acolchoada. FOTOS DE Adriano Miranda, Egídio Santos e Paulo Pimenta.
O trigo da Reforma Agrária congrega uma forte carga emocional no imaginário comunista. Estes pequenos sacos eram exibidos e vendidos em festas das colheitas e mesmo na Festa do Avante!
Desenho da prisão (6 de setembro de 1948) – O autor é Jaime Serra. Fora preso a 27 de março de 1949 na sequência da atividade política exercida a propósito da candidatura do general Norton de Matos à Presidência da República. Terá sido realizado com bicos de lápis que a sua companheira, Laura, metia dentro da fruta que de quando em vez conseguia enviar-lhe. Feito num pedaço de papel, mostra uma cena de espancamento.
Atribuído a José Martins Faria, natural de Barcelos, este cartão, então ainda designado “Bilhete de Identidade do Partido Comunista Português, Secção Portuguesa da Internacional Comunista”, é assinado pelo secretário da Federação Comunal de Lisboa, J. Rodrigues. O titular do cartão foi preso sucessivamente seis vezes, em 1923, 1924 e 1925, sempre “por ordem superior”.
É tido como o primeiro comunicado do PCP. Data de 1921 e não pretende apresentar a totalidade de um programa partidário, tarefa que remete para um primeiro congresso nacional, que se virá a realizar de 10 a 12 de novembro de 1923. Foi apreendido ao jovem barbeiro natural do Porto, José Carlos Rodrigues Frias.
Os rigores da clandestinidade obrigavam ao máximo de cuidado para que os militantes não fossem descobertos. Isqueiros com mecha, como este, datado de 1972, serviam para espalhar panfletos.
Mortalhas manuscritas (1965-69) – Faz parte de uma caixa de mortalhas de Adelino Pereira da Silva. Não tem uma única palavra rasurada. Escritos a lápis, estão uma data e um local: “Peniche 1969”. No topo lê-se, a olho nu, o nome César a tinta vermelha e, no final da segunda folha, a data. O resto precisa de uma lupa para ser lido. Era a forma encontrada pelos presos para fazerem sair mensagens das cadeias. Foto D.R. Paulo Pimenta
Peças de xadrez feitas com miolo de pão (1964). Os presos das prisões políticas encontravam as mais diversas formas para se manterem ativos. Diz-se no livro ser difícil, ao primeiro ou mesmo ao segundo olhar, perceber que estas peças são feitas com miolo de pão. Feitas por Dante Marques, couberam a Sérgio Ribeiro num sorteio feito entre os presos – na sequência de uma jornada cultural – num dia Primeiro de Maio. Foto D.R. Egídio Santos
Frasco de vidro com feijões. Não uns feijões quaisquer. São feijões da Reforma Agrária e “evocam as colheitas feitas num tempo novo, no qual as mãos que trabalhavam a terra, em simultâneo, constituíam UCP e cooperativas”.
A seguir ao 25 de Abril todas as estruturas políticas e partidárias foram prolíficas na elaboração de materiais de propaganda. Os autocolantes chegavam a ser material de coleção.
As condições de clandestinidade obrigavam muitas vezes às comunicações em código. O PCP utilizou as cifras desde meados da década de 1930 até aos anos de 1960.
Esta foice e martelo foi, para os autores do livro, o objeto mais surpreendente de quantos encontraram. Data de 1937. Terá sido feita pelo operário carpinteiro José Pedro Ferreira Godinho e foi escondida numa parede de um edifício em construção por três trabalhadores e o empreiteiro. Tiveram o cuidado de deixar uma mensagem para quem a encontrasse no futuro. Foi descoberta em 1977 do decorrer das obras na Casa da Cultura nas Caldas da Rainha.
As mulheres tinham um papel crucial para a criação de um ambiente de normalidade numa casa clandestina. Mas, por vezes, as mulheres tinham filhos. Era preciso, ou encontrar uma maternidade “segura”, ou ter os instrumentos necessários para o parto, muitas vezes auxiliado por enfermeiras, como Olívia Valente Vasconcelos, que deu contributos valiosíssimos, até para a formação das parturientes.
Relógio de pulso de Rogério Paulo usado para dar um dos sinais necessários à célebre fuga de Peniche, na qual participaram Álvaro Cunhal, Carlos Costa, Francisco Martins Rodrigues, Francisco Miguel Duarte, Guilherme da Costa Carvalho, Jaime Serra, Joaquim Gomes, José Carlos, Pedro dos Santos Soares e Rogério de Carvalho.
A marmita de um operário será o mais inócuo e inocente dos objetos. Salvo se, bem acondicionado no fundo da marmita, é transportado material tão explosivo como o “Avante!” clandestino.
As mulheres tinham um papel crucial para a criação de um ambiente de normalidade numa casa clandestina. Mas, por vezes, as mulheres tinham filhos. Era preciso, ou encontrar uma maternidade “segura”, ou ter os instrumentos necessários para o parto, muitas vezes auxiliado por enfermeiras, como Olívia Valente Vasconcelos, que deu contributos valiosíssimos, até para a formação das parturientes.
As mulheres tinham um papel crucial para a criação de um ambiente de normalidade numa casa clandestina. Mas, por vezes, as mulheres tinham filhos. Era preciso, ou encontrar uma maternidade “segura”, ou ter os instrumentos necessários para o parto, muitas vezes auxiliado por enfermeiras, como Olívia Valente Vasconcelos, que deu contributos valiosíssimos, até para a formação das parturientes.
Vestido de algodão feito em Caxias à mão por Conceição Matos por altura da sua primeira prisão, em 1965. Tinha sido presa no dia 1 de abril na casa clandestina onde residia com Domingos Abrantes. O vestido, ou a sua concepção, era também uma forma de resistência.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso