As crises sucedem-se na União Europeia. Crises de ajustamento macroeconómico na zona euro, episódios graves devidos às alterações climáticas, crises pandémicas motivadas pela globalização de vírus e bactérias, crises cibernéticas em consequência de ciberataques, vírus informáticos e biopirataria, crises geopolíticas motivadas pela falta de confiança e cooperação internacionais, crises políticas domésticas devidas ao populismo radical com repercussões sérias no plano regional e internacional. Todas estas crises, que na sua maioria são recorrentes, desencadeiam choques assimétricos sobre as sociedades europeias, economias e regiões mais vulneráveis. Como lidar com as consequências assimétricas destas crises recorrentes?
Da Europa Comunitária à Europa Federal
O pragmatismo e o incrementalismo europeus têm sido muito úteis, mas já não são suficientes. Perante tão grandes desafios, a União Europeia precisa de uma Grande Transformação, de um Momento Polanyi. Falta profundidade e espessura ao projeto político europeu. A Conferência sobre o Futuro da Europa (2022) aprovada pelo Parlamento Europeu tem sido adiada devido à pandemia da covid 19, mas parece evidente que a “polity, a policy e a politics”deste gigante económico e anão político que é a União Europeia estão num impasse. Além disso, sem convergência económica e social, a União Europeia corre o risco de se fragmentar e balcanizar, pois, as grandes transições – climática, demográfica, digital, migratória, laboral – que estão à nossa frente podem desencadear choques assimétricos na sua implementação no terreno concreto de cada Estado membro.
É aqui que nos encontramos, numa verdadeira encruzilhada, olhos nos olhos, com histórias, culturas, ideologias, influências, economias e políticas domésticas muito variadas. Apesar das minhas dúvidas sobre o sucesso desta conferência, arrisco, ainda assim, algumas propostas que considero fundamentais no quadro de uma Grande Transformação para a década até 2030. Esse Momento Polanyida União Europeia seria traduzido numa revisão dos tratados, um Ato Federal Europeu, e contemplaria duas grandes orientações no horizonte 2030: uma União Política Federal e um “New Deal” para o Crescimento e o Emprego.
O Ato Federal Europeu
No Ato Federal deveriam caber as seguintes reformas político-institucionais:
– O Congresso Europeu com duas câmaras e representação igual dos Estados na 2ª câmara,
– Um Executivo Europeu,
– Uma Procuradoria Europeia (em curso),
– Um Conselho de Segurança Europeu,
– Um Banco Central com competências mais alargadas de natureza federal,
– Um Tesouro Europeu com competências de emissão e mutualização de euro-obrigações,
– Um Orçamento Federal com recursos próprios por via de uma tributação europeia,
– Um Banco Europeu de Investimentos com competências e meios reforçados,
– Um novo Pacto de Estabilidade e Crescimento sobre a convergência europeia,
– Uma autoridade europeia de supervisão financeira e bancária,
– Uma agência europeia de “rating”.
No que diz respeito à estratégia “New Deal” de crescimento e emprego para 2030 deveriam, desde logo, caber as seguintes medidas:
Em primeiro lugar, a federalização do MEE (mecanismo de estabilidade europeia) e um aumento substancial dos seus recursos (um fundo monetário europeu), se não for politicamente possível que o BCE tenha competências financeiras de último recurso, isto é, competências próprias de uma reserva federal.
Em segundo lugar, a recapitalização do sistema bancário europeu em íntima articulação com o relançamento do mercado interbancário europeu e o financiamento da economia real.
Em terceiro lugar, o reforço substancial do capital do BEI para acrescer o seu efeito de alavancagem junto do mercado de capitais e o alargamento das suas competências como instrumento de financiamento da estratégia 2030.
Em quarto lugar, a construção de uma união orçamental, com base em recursos tributários próprios e de acordo com uma “lei de enquadramento orçamental federal” que determinaria a natureza federal do regime orçamental.
Em quinto lugar, um plano de investimentos federais, um “New Deal” europeu de construção de redes europeias, na linha do que propõe o pacto ecológico europeu (descarbonização, energias renováveis, biodiversidade), o plano europeu de ação digital, mas, também, um novo programa europeu para a saúde pública, isto é, tudo o que diga respeito às redes de investimentos inteligentes, sustentáveis e inclusivos.
Em sexto lugar, a monetarização federal da União Europeia, o que pode significar, no contexto atual, reconsiderar a dívida pública dos Estados membros na posse do BCE.
Por fim, pode afirmar-se que, sem um Banco Central Federal que seja o financiador de último recurso não haverá, muito provavelmente, meios suficientes para levar a cabo esta abordagem politicamente mais ambiciosa. Todavia, uma Agência Federal para o Crescimento e o Emprego pode, igualmente, traçar uma linha de equilíbrio de longo prazo e, em consequência, acalmar os mercados financeiros e o respetivo custo de acesso ao capital.
As perspetivas portuguesas no quadro de uma Europa mais federal
No quadro acabado de descrever, ou seja, perante tantas transições e crises recorrentes e assimétricas, não é arriscado dizer que a economia portuguesa está, claramente, em compasso de espera enquanto aguarda pelos próximos desenvolvimentos no espaço da União Europeia. E, desde logo, o que acontecer em matéria de condicionalidade europeia,isto é, uma política que promova as grandes opções da União Europeia – o pacto ecológico, a transição digital, a reindustrialização, o mercado único de capitais, o pilar social europeu, os interesses e os valores da Europa no mundo – e não uma mera condicionalidade instrumental à maneira do pacto de estabilidade e crescimento, do tratado orçamental e do semestre europeu, tal como os conhecemos.
Nesta linha de orientação, de uma condicionalidade mais estrutural e menos instrumental, as novas regras de oiro seriam relativas, em primeira instância, às reformas de fundo em cada país e aos respetivos programas nacionais de reforma (PNR), como exemplo de boa administração dos programas europeus de financiamento e, em segunda instância, como objetivos instrumentais de 2º grau, alguns critérios e regras de boas práticas em matéria de execução orçamental e financeira. Vejamos alguns tópicos essenciais desta nova condicionalidade pós-pandemia:
– Em primeiro lugar, o enquadramento devido às ajudas de Estado, tendo em vista o apoio a uma política equitativa e não assimétrica de reindustrialização europeia;
– Em segundo lugar, o enquadramento devido à política de harmonização fiscal europeia, pois sabemos que a política fiscal é usada como instrumento de incentivo discriminatório à economia;
– Em terceiro lugar, o enquadramento devido à política orçamental, em especial os procedimentos por défices excessivos e os ritmos de amortização da dívida pública;
– Em quarto lugar, o enquadramento devido à política monetária, em especial, em matéria de inflação e compra de ativos por parte do BCE, sem esquecer as novas condições de capitalização do sistema bancário europeu no período pós-pandemia;
– Em quinto lugar, o enquadramento devido à nova política financeira, não apenas em termos de mercado único de capitais, mas, também, de emissão de nova dívida europeia conjunta;
– Por último, é preciso enquadrar devidamente a quadratura financeira de uma Europa Política na próxima década entre novos recursos próprios, transferências dos Estados membros, mutualização de dívida conjunta e financiamento monetário (BCE) e procurar, em cada momento, o ponto de equilíbrio mais apropriado.
Aqui chegados, a grande questão é a de saber se podemos criar todos os instrumentos referidos, de uma condicionalidade mais estrutural e menos instrumental, sem dar o passo seguinte em direção a uma União Política Europeia de natureza federal e, além disso, se a economia portuguesa pode competir nos mercados internacionais sem essa retaguarda de natureza federal.
Com efeito, se tudo continuar como até aqui, no quadro de uma Europa Intergovernamental de diretório franco-alemão que cria mecanismos de exceção para lidar com as crises, como é, agora, o caso do mecanismo de recuperação e resiliência, não creio que haja condições para a economia portuguesa gerar recursos próprios suficientes e sair, pelos seus próprios meios, da jaula de ferro em que se encontra (dívida pública e crédito malparado). E a situação ficará pior se a economia europeia, ela própria, atravessar um período longo de estagnação. Se tal acontecer no período pós-pandemia, até 2023/24 pelo menos, a breve trecho a nossa situação estará insustentável. Entraremos definitivamente na zona de despromoção.
A Europa não pode permitir a japonização da sua economia, ou seja, a estagnação da procura externa da União Europeia ao longo da década, nem, em consequência, a multiplicação de regimes de exceção e cláusulas derrogatórias para lidar com a situação de cada Estado membro. A tentação de sair da zona euro e, mesmo, da União poderá crescer todos os dias. Em síntese, uma expetativa, a União Federal, que pode não se confirmar, e uma condicionalidade macroeconómica atual que não serve os interesses de Portugal. Para o melhor e para o pior estamos irremediavelmente prisioneiros do que acontecer na União Europeia.
Notas Finais
E, assim, chegamos à perspetiva federal de integração europeia, uma ambição e uma tarefa complexas, mas, em minha opinião, as únicas que justificam um elevado investimento político, com retorno suficiente “minimamente garantido” no horizonte temporal 2030.
Quero crer que outras Europas são possíveis para além da Europa Federal que aqui proponho, pois, acredito que o pragmatismo europeu da política dos pequenos passos é “politicamente avisado” para manter a Europa unida, embora com um desempenho medíocre ou mediano e muito aquém das suas capacidades e recursos. Quanto a Portugal, corremos o sério risco de a terceira década do século XXI ser igualmente monótona, melancólica e medíocre, tal como as duas primeiras.
Nunca como agora foi necessária tanta coragem política para responder a tantos desafios, quer no plano doméstico ou europeu. Porém, receio que a tática política de curto prazo irá colidir frontalmente com a estratégia política de longo prazo e a sobrevivência política e pessoal irá sobrepor-se às incertezas e dúvidas de médio e longo prazo. Para as economias que já atingiram velocidade de cruzeiro não será grave, mas para as economias com problemas estruturais antigos e vulnerabilidades recorrentes o futuro próximo não será brilhante.
Do mesmo autor:
► União Europeia, as questões pendentes para 2021, por António Covas
► A Presidência Portuguesa da União Europeia, por António Covas
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