No início de Junho de 2021, Edgar Morin fez publicar em França um novo livro: Lições de um século de vida. Nele, que ainda não tive oportunidade de ler e sobre o qual mantenho a maior curiosidade, o pensador destaca os seus erros, com os quais aprendeu, evoluiu, cresceu espiritualmente e foi ao encontro de uma visão cada vez mais humana. Poder-se-ia, eventualmente, na imanência da igualdade de género e tratando-se de um homem, pensar que faz um acto de contrição: não o vejo como um gesto, todavia, meramente individual. Porque uma biografia intersecta sempre a história universal, por um lado, e como o próprio Edgar Morin defende, por outro, porque nesta acentuação dos “erros” pode vislumbrar-se um apelo crucial para os tempos que vivemos, e precisamente dando uma laçada conceptual à igualdade de género. Repare-se que se acentua a palavra “poder” no espectro da igualdade de género, “exigindo” essencialmente: seja visibilidade, seja os mesmos cargos, seja os mesmos trabalhos, seja os “mesmos”.
Ora, creio firmemente que as mulheres deverão ter as oportunidades todas no sentido de lhes ser possibilitado o acesso à aprendizagem formal, afinal o que lhes foi obstado historicamente, e esta é uma condição a montante. Georges Didi-Huberman, por exemplo, defende que seja feita uma crítica das condições sociais de produção da arte, e é aqui que poderemos, e deveremos, calibrar esse desequilíbrio ancestral, que obstou à convocação das mulheres: seja nas escolas, então, promovendo que nelas ingressem, seja nos canais de difusão das obras, insistindo na visibilidade dos seus trabalhos, para que se constituam hábitos no âmbito social. Nestes termos, uma palavra como seja “poder” não me parece ser a que melhor sincretiza a urgente mudança de paradigma: seria preferível, e mais sonante, chamar-lhe justiça. Mas não se trata de inverter uma tendência, ou seja, de pensar: agora é o tempo delas. Não: agora é o tempo de toda a gente, até dos prevaricadores.
No plano da obra, de arte, por outro lado, julgo que devem ser feitas ressalvas importantes. Mas quem, em perfeita consciência, pode acusar Johannes Vermeer de reificar a mulher em A Leiteira, por exemplo? Ou quem, senão revelando má-fé, pode dirigir a sua fúria contra A Maternidadede Gustav Klimt? Ou ainda, podemos mesmo, de facto, considerar a adorável Virgem dos Rochedos, de Leonardo da Vinci, uma manifestação do poder desmesurado deste artista-homem? Se existe algo na pintura de Leonardo que prevalece e rasga o tempo é, precisamente, essa pele luminosa, essa ternura incandescente, esse amor pela pele como fronteira do humano. Se formos beber aos Futuristas homens, aí, sim, podemos falar em misoginia, em virulência, em truculência. E se estivermos com atenção, veremos que a República e seios femininos descobertos são uma e a mesma coisa: o corpo das mulheres é a encarnação da Época Contemporânea, e é ele o alimento simbólico latente, pese embora as palavras não tenham, nesse corpo, encontrado uma boca legítima em 1789, bem como durante todo o século XIX. Assim, a igualdade de género trata-se de uma reivindicação enquadrável no horizonte republicano, o mesmo que se alimentou do corpo das mulheres, mas lhes cortou a palavra pública.
A arte não é poder. As obras de arte são, mesmo, a antítese do poder. Quem, mas quem, pode acusar Vincent Van Gogh de usurpação do olhar quando pintou a sua Amendoeira em Flor? Quando Edgar Morin vem realçar os seus “erros”, o que se ressalta numa actualidade em que a palavra “sucesso” é o adjectivo que (quase) todos e (quase) todas desejam ostentar, parece-me muito interessante transpor a clarividência e coragem deste homem para o plano da igualdade do género. Neste sentido: será, realmente, a resiliência o que se forja neste plano? Não se remeterão as mulheres, que se defendem amiúde “empoderadas”, a uma corrida contra o tempo? A minha proposta é que as próprias mulheres, nós, vejam, vejamos, o tempo em que de facto foram, fomos impedidas, de estudar publicamente, de criar por direito (e por necessidade e por urgência), de estabelecer mundividências partilháveis, como uma oportunidade: o tempo em que resistimos, formando temperamentos e vocações. Porque, repito: arte não é poder. As obras de arte são, mesmo, a antítese do poder.
*Cláudia Ferreira é natural de Coimbra. Licenciada em História/var. História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo frequentado Estética e Filosofia da Arte na FLUCL, em Lisboa, sendo nessa mesma cidade que viria a concluir o mestrado em Estudos sobre a Mulher – As Mulheres na Sociedade e na Cultura, concretamente, na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, para, em 2019, obter o doutoramento em Estudos Contemporâneos na Universidade de Coimbra com a tese intitulada O Rosto das Horas: do feminino e do masculino, com a arte. É investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20 e desempenha as funções de Técnica Superior na Câmara Municipal de Condeixa.