A Semana do Brasil no Algarve é um evento cultural que decorreu pelo segundo ano consecutivo nesta região, criando pontes entre o Brasil e Portugal, através de participantes de ambos os países, não esquecendo o contexto ibérico, com participação de poetas do país vizinho.
O Consulado-Geral do Brasil em Faro promoveu a iniciativa e apresentou uma ampla oferta cultural, entre 8 e 15 de Outubro, com eventos em Sagres e Faro.
Enquanto coordenadora no Sul do Movimento Internacional Lusófono (MIL) congratulo-me com esta iniciativa e parceria, que incluiu a apresentação do 20º número da Revista Nova Águia, revista de cultura, ensaio e poesia, que é o órgão de comunicação deste Movimento, tal como no início do Séc. XX, a Revista Águia foi o órgão de comunicação do Movimento da Renascença Portuguesa.
Poderá ser lido na Revista um artigo intitulado Literatura e Diplomacia: algumas reflexões, da autoria do vice-cônsul do Consulado-Geral do Brasil em Faro, Cláudio Guimarães dos Santos, grande impulsionador da Semana do Brasil.
Clarice Lispector e os seus fascinantes horizontes poéticos
Quando penso em literatura brasileira ocorrem-me alguns nomes marcantes, mas gostaria de referir Clarice Lispector pelo fascínio da sua obra literária e dos seus horizontes poéticos.
A minha intervenção na mesa-redonda intitulada “Poesia Brasileira: um olhar estrangeiro”, não permitiu alongar-me muito, uma vez que eramos seis poetas a intervir. Aqui ficam algumas das palavras sobre Clarice Lispector e o estímulo à leitura de uma incontornável escritora brasileira.
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1920 e foi para o Brasil ainda criança de colo, naturalizando-se mais tarde como brasileira.
Os seus ensaios, crónicas, contos e textos, sejam mais ou menos poéticos, falam de realidades do dia-a-dia, de forma intensa e ao mesmo tempo com uma subtileza que não deixa o leitor indiferente.
Quando se começa a ler Clarice Lispector, quer saber-se mais e compreender esta mulher enigmática, tal como as subtilezas do seu universo discursivo.
O Prof. Doutor Carlos Mendes de Sousa, professor de literatura brasileira na Universidade do Minho, que escreveu a sua tese de doutoramento sobre Clarice Lispector, tem dois livros que ajudam a compreender melhor a escritora.
Um deles intitulado Clarice Lispector – Figuras da Escrita (2000), obra com a qual conquistou o Grande Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores (APE) e outro Clarice Lispector – pinturas (2013).
Neste mais recente livro apresenta as artes plásticas como uma parte relevante na vida de Clarice, e como a pintura foi fundamental para a sua criação literária. O livro apresenta várias das obras plásticas da artista, num género de “abstraccionismo naïf”.
O professor da Universidade do Minho refere que a pintura era “um modo de se interrogar no interior do ato criativo, algo mais próximo de trazer paz e catarse do que a investigação das sombras da sua literatura. Era, então, a sua forma mais pura de se expressar”.
Carlos Mendes de Sousa referiu na Feira do Livro do Porto que “a novidade de Clarice advém em grande medida da assunção do seu lugar a partir de um estranhamento projectado na afirmação de um território-língua (…). A sua biografia revela-nos o fascinante encontro consigo mesma”.
‘Não se esmaguem com palavras as entrelinhas’
Quando lemos Clarice Lispector sentimos a sua angústia, essa procura e insatisfação que ela transmite. Intui-se que há mistério, começamos a vislumbrar as entrelinhas, a entrar no indizível. Ela tanto é irónica e dura no que escreve, como é delicada e fluída numa fascinante prosa poética.
“Já que se há-de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”. (Clarice Lispector)
Quem escreve sabe o que é sentir-se de mãos vazias, sabe o que é escrever e sentir que ainda não é o tempo de partilhar, conhece a solidão de escrever, o refúgio na palavra, essa matéria viva!
Por isso gostei deste trecho de A paixão segundo G.H.: “A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas – volto com o indizível”.
Já conhecia alguns textos “clariceanos”, mas passei a interessar-me mais quando há cerca de dois anos a escritora Adília César publicou no seu Facebook um jogo de parecenças entre pessoas do meio cultural algarvio com personalidades da literatura internacional. Achei curioso e procurei saber se também haveria parecenças ao nível do sentir a palavra. Pensei que Clarice fosse também uma mulher escorpião, é muito intensa. Afinal é uma sagitariana, daquelas escritoras que não têm medo de “sentir demais”. A sua escrita é tocante e a sua história de vida é cheia de sofrimento, com a perda da mãe aos oito anos de idade.
Num excerto de uma crónica sua, li um parágrafo sobre a vida e a escrita: “Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever”.
Há quem considere Clarice Lispector um Fernando Pessoa no feminino, pelo desassossego que provoca e porque os dois partilham um amor assumido pela língua portuguesa. Ambos escritores lusófonos, com um mar intenso de palavras que os une…
A autora prende o leitor com o mistério e o jogo de palavras. Refere sobre si própria: “Sou tão misteriosa que nem eu me entendo”. Ao mesmo tempo há nela transparência: “Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos”.
Clarice Lispector morreu em 1977 no Rio de Janeiro, vítima de doença oncológica. Deixou mais de 20 obras publicadas, sendo as principais: Perto do Coração Selvagem, Sopro de vida, O lustre, Laços de Família, A descoberta do Mundo – crónicas, Felicidade Clandestina, A Paixão segundo G. H., Água Viva entre outras.
As últimas palavras, já no hospital, foram:
“Minha alma tem o peso da luz.
Tem o peso da música.
Tem o peso da palavra nunca
dita, prestes quem sabe a ser dita.
Tem o peso de uma lembrança.
Tem o peso de uma saudade.
Tem o peso de um olhar.
Pesa como pesa uma ausência.
E a lágrima que não se chorou.
Tem o imaterial peso da solidão no
meio de outros”.
Bibliografia:
Lispector, C. (2013). A descoberta do Mundo – crónicas. Lisboa: Relógio d’Água.
Lispector, C. (2000). A paixão segundo GH. Lisboa: Relógio d’Água.
Sousa, Carlos Mendes de. (2000). Clarice Lispector – Figuras da Escrita. Braga: Universidade do Minho.
Sousa, Carlos Mendes de. (2013). Clarice Lispector – Pinturas. Curitiba Brasil: Rocco.
https://www.escritas.org/pt/clarice-lispector
(Artigo publicado na edição papel do Caderno de Artes Cultura.Sul de Outubro)