A linha do comboio, sempre a linha do comboio.
Em Faro a relação da população com a Ria Formosa e com tudo o que fica para além da linha do comboio é problemática, mas é apenas isso… problemática. É psicológico, muito mais do que real o problema e do lado de lá da linha há já muito a acontecer.
O parque ribeirinho da Faro, com espaços de lazer e de fruição, nomeadamente para o desporto, veio em larga medida desformatar a ideia enraizada de que do outro lado da linha é do lado de lá do mundo.
O mesmo faz, dia após dia e desde há dois anos, o espaço “Fábrica dos Sentidos”, um espaço dedicado às artes e ao fenómeno criativo que aposta numa linguagem diferente dos formatos habituais para realizar um discurso artístico junto dos visitantes.
De quinta-feira a domingo, a proposta é a de se deixar levar por um ‘open space’, onde pode ver artes várias, tomar um café, comprar peças, beber uma bebida, ler, estudar, e tudo o mais até mesmo apenas contemplar.
Situado nas traseiras da estação da CP de Faro, com acesso rodoviário pela passagem de nível do Teatro Municipal ou a pé pela passagem para peões nas traseiras da doca, ou mesmo atravessando a linha na estação de comboios, trata-se, de acordo com Mató [Marco António], um dos seus fundadores, de um projecto cuja ideia fundamental é que “o panorama cultural da cidade cresça evolua e mude, mude muito. Desejamos que as pessoas tenham uma maior consciência da nossa história, do nosso património e da nossa cultura, bem como, das novas tendências e ideias que fazem com que a realidade cultural seja sempre evolutiva e criadora”.
“A cultura é fundamental para que nós, portugueses, nos encaremos cada vez mais sem nenhum tipo de fatalismo, sem nenhuma ideia de ‘coitadinhos’ e consigamos perceber o valor real que temos e as nossas potencialidades sem constrangimentos de qualquer ordem”, defende, sublinhando que “este género de projectos serve para criar consciência, abrir novos caminhos, apresentar novas propostas e alternativas credíveis e que um dia podem crescer e maturar”.
Um projecto pensado durante anos, por um colectivo apostado em fazer
Fazer é a palavra de ordem, criar uma imposição tão forte como respirar. Pode ser esta a leitura das palavras de Mató, um performer que percorreu o mundo, influenciou e se deixou influenciar sem esquecer a sua terra, as suas origens e uma aposta clara no sítio que o viu nascer.
“Este projecto é muito mais antigo do que o espaço. Antes de mais estivemos aqui durante cerca de nove meses de porta fechada a torná-lo adequado e habitável para o fim que pretendíamos dar-lhe, foi um esforço de cerca de 60 pessoas para tornar realidade o espaço físico e é, hoje ainda, um processo em contínuo que decorre e se vai prolongar”.
Segundo Mató, a Fábrica dos Sentidos “é um projecto colectivo que envolve desde o início muita gente além de mim, uns que estão cá desde a primeira hora, outros que estiveram e foram saindo, mas que felizmente em grande parte continuam na cidade a desenvolver os seus projectos, e ainda outros que estão sempre a integrar o projecto”.
“Pela minha parte sempre achei que fazia falta um projecto deste tipo aqui na cidade, nasci no hospital velho, sou de Estoi e vivo em Olhão – sou olhanense de coração – e considerava que tinha a obrigação, já que estive envolvido em outros projectos do género na Europa, de criar na minha terra algo de similar”, reforça.
“Depois, criaram-se as condições para que se tornasse realidade, por um lado uma necessidade de diversas associações, cerca de 20 na fase inicial, de terem um espaço para desenvolverem os seus projectos e a crise que fez com que fosse possível ter este espaço a um preço enquadrável nas nossas capacidades financeiras”, recorda, numa retrospectiva sobre a aposta que fez o colectivo num espaço pensado para ‘pensar fora da caixa’.
Um espaço sem formatos pré-concebidos
Uma nave industrial ganhou assim um ambiente único e singular, discursivamente aparentemente confuso, mas capaz de gerar impressões marcantes e que convida a uma apropriação descomplexada das mensagens artísticas veiculadas.
A Fábrica dos Sentidos não é um sítio formatado onde as pessoas vão ver divisórias entre as diferentes áreas. Há uma leitura que pode ser feita de forma individualizada num espaço que tenta ser uma continuidade de carácter quase orgânico e em plena evolução e mutação.
Segundo Mató, “como disse Darwin “the mind is the chaos of delight”. A inexistência de barreiras físicas propõe a ideia de inexistência de barreiras psicológicas na leitura que cada um possa fazer do espaço e do que ele contém, mostra e convida a interpretar”.
O convite de um espaço aberto a todos, do público aos artistas
“O processo criativo é tão individual como colectivo, aqui há espaço para tudo, do mais ao menos formal e apresentam-se ideias que vão de criações maturadas a projectos em pleno desenvolvimento e mesmo em fase de experimentalismo”, refere Marco António, que é em grande medida o rosto do espaço.
“Pode ser arte ou comunicação pura e dura, tratam-se de ideias e jogos com a realidade que pretendem abrir leituras e percursos de pensamento e sensações a quem visita o espaço”, diz, tudo numa paleta onde ao mesmo tempo se encontram trabalhos artísticos já concebidos em termos finais.
O público alvo são todas as pessoas que tenham interesse por arte em geral e pelo processo criativo, seja do ponto de vista da visita simples do espaço, seja para poder ficar por ali a ler, a tomar um café ou uma bebida ou simplesmente estar.
Por outro lado, diz Mató, “qualquer pessoa de qualquer área que deseje ter um espaço para desenvolver um qualquer projecto tem aqui também um espaço aberto a criar condições para esse processo criativo poder ter uma ‘casa’. Somos um projecto cooperativo aberto à sociedade e que acolhe as ideias sem preconceber resultados, num atitude de absoluta liberdade criativa”.
O público e a realidade actual
“O nosso público actual ainda passa muito pela comunidade estrangeira residente e desde há cerca de ano e meio pela comunidade de turistas que visita Faro e em particular a que está nos mais de 20 hostels que foram abrindo na cidade e que lhe deram uma vida completamente nova da qual as pessoas ainda não se apercebem de forma completa, mas que se tornará notória dentro de três a cinco anos”, refere Mató.
“Pela primeira vez Faro tem turismo como nunca teve e um mercado e um público como nunca conheceu que visita e ‘consome’ a produção cultural local”, reforça, reconhecendo que, “por outro lado, temos uma acentuada presença de alunos de Erasmus que frequentam felizmente a nossa universidade, que tem realmente apostado nesta ferramenta de atracção de massa crítica para a cidade, que traz consigo um diversidade cultural de grande relevo”.
Para o artista, “a cidade está a mudar num processo que é já irreversível, venham as forças de bloqueio que vierem. Pela nossa parte, enquanto projecto que se desenvolve numa zona da cidade que sendo a mais nobre está desaproveitada, estamos a participar nesse esforço de criar uma nova realidade na cidade”.
E esclarece a ideia: “Em qualquer parte da Europa estes projectos servem para espicaçar zonas degradadas e menos aproveitadas pelas populações e que com o tempo e a atracção de públicos que fazemos vão sendo novamente vividas pelas pessoas. Depois, vem a especulação imobiliária e prossegue à sua maneira o trabalho de re-inclusão destas zonas na estrutura vivencial da cidade que iniciámos”.
Para Mató, que realiza o projecto sonhado aos 15 anos de idade, agora que tem 41, “este é um processo que deveria ser replicado em várias zonas da cidade, reinventado a utilização dos espaços e a forma como as pessoas encaram a malha urbana”.
“Os artistas fazem este trabalho de ‘partir pedra e de recuperar’ e depois avançam para novas áreas para reiniciar o processo com a zona entretanto intervencionada a ganhar a sua vida própria”, refere.
Entretanto, as portas da Fábrica dos Sentidos estão abertas para miúdos e graúdos, num convite a viajar pelo pensamento e pelos sentidos de forma descomplexada porque afinal a arte é isso mesmo uma viagem pela vida.