É a única espécie que modifica o ambiente ao ponto de influenciar a própria evolução, assim como a das outras espécies. O impacto da nossa existência no planeta é de tal ordem que a era que hoje vivemos denomina se Antropoceno, literalmente, era humana. E depois de cerca de sete milhões de anos em que houve coexistência de várias espécies de humanos, hoje somos a única espécie viva. Estamos anormalmente sós.
Há toda uma série de perguntas sobre a nossa história evolutiva que deveria interessar a todos. Para além de que, o passado do sapiens elucida sobre o seu futuro, o nosso. E quais os nossos apanágios? Desde logo, temos um cérebro que é três vezes maior do que aquele que seria de esperar num primata do nosso tamanho corporal, ou seja, uma das nossas grandes características distintivas reside no cérebro, não só é enorme como tem uma complexidade ímpar. Importa frisar que esta característica está intimamente ligada à nossa dieta e à forma como nos deslocamos. Atualmente somos os únicos primatas bípedes. É uma tríada evolutiva chave: cérebro-dieta- locomoção.
Os fósseis são a pista mais real sobre quem eram os nossos ancestrais, e como e porquê nos tornámos na espécie que hoje somos. Nos últimos tempos os métodos de abordagem dos ossos dos nossos ancestrais, um dos tipos de fósseis mais frequentes, permitiram descodificar a informação neles guardada, nalguns casos há milhares de anos. Efetivamente os ossos podem ser considerados como um repositório de memórias que necessitam de softwares sofisticados para o desvendar. A descodificação do ADN antigo, mitocondrial e nuclear, é uma boa ilustração desses avanços tecnológicos. Foi conseguido o feito incrível de conseguir aceder ao ADN nuclear dos fósseis de Atapuerca, nomeadamente da Sima de los Huesos, com cerca de 400 mil anos. Não obstante, não podemos esperar que esta barreira cronológica seja indefinidamente ultrapassada pois a preservação de ADN em fósseis com mais de 1 milhão de anos, a acontecer, será ínfima. Mas Atapuerca, uma serra perto de Burgos, em Espanha, é um lugar chave para conhecer a história evolutiva da nossa espécie, designadamente desde há cerca de 1,5 milhões de anos. E muito recentemente foi publicado um outro estudo fantástico, desta feita relativo a Gran Dolina e ao Homo antecessor, um dos primeiros habitantes desta serra mítica e mediática, que viveu há cerca de 1 milhão de anos.
Atualmente, a análise de proteínas antigas com espectrometria de massa, uma abordagem comumente conhecida como paleoproteómica, permite ultrapassar a barreira cronológica do ADN antigo pois as proteínas antigas sobrevivem durante muito mais tempo que o ADN antigo, permitindo aceder a filogenias baseadas em dados moleculares para além dos limites de degradação do ADN. A análise de paleoproteínas do esmalte dentário de um dente de Homo antecessor permitiu aceder a informação genética com 800 mil anos. As proteínas sugerem que o H. antecessor era um parente próximo do último ancestral comum dos humanos, Neandertais e Denisovianos. Estas três espécies, a nossa, os Neandertais e os Denisovianos, coexistiram na Europa e na Ásia nos últimos 70 mil anos. Muito recentemente foi confirmado que as indústrias líticas dos primeiros homens modernos europeus e dos neandertais coexistiram por mais de 100 mil anos. Para além disso, foi confirmado que estes nossos parentes mais recentes, os Neandertais, já possuíam linguagem. Com base numa investigação baseadas em TC (tomografia computorizada) de alta resolução, que permitiu recriar as estruturas 3D do ouvido do Homo sapiens e dos Neandertais e de fosséis da Sima de los Huesos, ficou a saber se que as capacidades auditivas dos Neandertais se aproximavam das nossas.
Ainda um outro estudo recente, mostra que, tal como nós, os Neandertais desmamavam os bebés sensivelmente na mesma altura e também introduziam os alimentos sólidos na dieta das crianças por volta dos 5-6 meses. Ou seja, mais uma prova que, comportamentalmente, eram muito parecidos connosco, e que os padrões de crescimento eram igualmente similares. Este tipo de descobertas foi conseguido com base na análise minuciosa de dentes de leite de três crianças de Neandertal. Relembre-se que várias descobertas arqueológicas têm demonstrado que os Neandertais também eram artistas: poderiam pintar grutas e usar colares, por exemplo. Se acrescentarmos a tudo isto o facto de os genomas destas duas espécies estarem hoje descodificados, temos hoje a certeza que nós, sapiens, nos cruzámos com outras espécies, designadamente com os Neandertais. Eles estão assim entre nós pois cerca de 2% do material genético do nosso genoma, das populações não africanas, é de Neandertal.
Esta é apenas uma pequena nota sobre notícias atuais do sapiens. Importa não esquecer que o sapiens vai continuar a evoluir. E, sobretudo, o sapiens vai ter mesmo que continuar a ser verdadeiramente sábio para conseguir sobreviver nesta nova era em que as pandemias representam um desafio complexo.
*Eugénia Cunha é Professora catedrática convidada do Departamento Ciências da Vida, FCTUC. Diretora do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, Delegação do Sul, Lisboa.