Corria o verão de 2019, quando Mykhailo Fedorov chegou a vice-primeiro ministro da Ucrânia com o propósito de pôr o “Estado no telemóvel”. O projeto pretendia migrar toda a Administração Pública para os bolsos e malas dos ucranianos até 2024, mas acabou por ser sujeito a revisão depois da invasão russa iniciada na semana passada.
Fedorov não se conformou e, com um punhado de tweets, conseguiu que o empresário Elon Musk desse luz verde à estreia das comunicações de satélite da Starlink, e bloquear fluxos de receitas entre YouTube e internautas russos. Atualmente, está em curso uma campanha de recrutamento de hackers para ataques a alvos previamente identificados na Rússia. Fedorov pode não ter conseguido pôr o “Estado no telemóvel”, mas pelo menos acredita está a ajudar a salvar a Ucrânia com o telemóvel.
“Estamos a criar um exército das TI (Tecnologias da Informação). Todas as missões operacionais serão apresentadas aqui: https://t.me/itarmyofurraine. Vai haver missões para todos. Vamos continuar a lutar nesta ciberfrente”, anunciou Fedorov no Twitter no passado sábado.
Aparentemente, a campanha de recrutamento de hackers não tardou muito a produzir eco: mais de 29 mil pessoas já se registaram no canal de Telegram para participar ou, pelo menos, conhecer as missões atribuídas a esta que será provavelmente a primeira legião estrangeira de hackers a ser formada, na história mundial, com o propósito assumido de reagir à invasão de um país.
Presidência da Rússia, Gazprom, bancos como o VTB ou o Sberbak, Ministério da Defesa, autoridades tributárias e várias empresas de maior dimensão figuram na lista de alvos a atacar pelos hackers que responderam à chamada de Mykhailo Fedorov.
Tweet de Mykhailo Fedorov sobre a campanha de recrutamento de especialistas em cibersegurança
O novo braço digital da defesa ucraniana surge como reação mais previsível aos múltiplos ciberataques lançados pelas forças russas antes e durante a invasão – mas não esgotou a capacidade de iniciativa do gabinete de Fedorov. Se, a 17 de fevereiro, o vice-primeiro ministro ucraniano ainda dava largas ao contentamento pela aprovação de leis que facilitam o uso de bitcoins e outras criptomoedas, já depois da invasão russa a prioridade passou para a recolha de donativos em criptoativos para ajudar ao esforço de guerra.
Em paralelo, numa missão comparável à de uma digressão diplomática especializada em gigantes da Internet, o governante que tem a pasta da digitalização ucraniana voltou a fazer do telemóvel uma arma para tentar convencer Rakuten, PayPal, Twitter, Google e Netflix a tomar medidas que bloqueiam negócios e a disseminação de propaganda pró-Rússia. Numa das mais recentes iniciativas publicadas no Twitter, o governante ucraniano solicitou às maiores casas de câmbios especializadas em criptoativos que recolhessem informação sobre as principais contas de russos endinheirados.
Tim Cook, diretor executivo da Apple e líder da empresa mais valiosa do mundo, também foi visado pela campanha de sensibilização ucraniana – mas até à data ainda não há registo de qualquer tomada de posição da “marca da maçã”. E esse também pode ser um sinal de que algumas das maiores marcas da Internet terão sido apanhadas a meio do fogo cruzado russo-ucraniano. Esta segunda-feira pode atuar como o momento da verdade para grande parte dessas empresas: segundo a Reuters, a Apple, a Spotify e a Viber aceitaram os termos impostos pela nova legislação que obriga à instalação de sucursais na Rússia e de meios de contacto direto com o consumidor.
Os requisitos até podem fazer sentido à luz do respeito dos direitos de consumo, mas em tempo de guerra não faltam analistas que admitem que o objetivo maior passa pelo controlo da informação divulgada junto da população russa.
A recente legislação russa prevê bloquear receitas de publicidade de todas as marcas que não aceitem esses termos até março – o que poderá limitar a capacidade de atuação de Twitter ou Facebook, que têm especial importância na divulgação de mensagens políticas ou na disseminação de conteúdos que refletem a realidade.
A Reuters recorda que, muito antes da entrada em vigor da legislação mais restritiva, as autoridades russas começaram a aplicar multas e condicionamentos às plataformas de mensagens e à reprodução de vídeos, a fim de evitar a disseminação de conteúdos considerados falsos. A guerra da informação assumiu nova escalada – e desta vez, possivelmente devido aos apelos de governantes como Mykhailo Fedorov, Facebook, Twitter e Google começaram a aplicar bloqueios aos conteúdos que estão associados a campanhas de desinformação provenientes de Moscovo ou que simplesmente não correspondem à realidade dos factos registados durante a invasão da Ucrânia.
Para muitos dos gigantes da Internet, a posição é especialmente delicada. Além da liberdade de expressão, que é um direito civil e também o motor de negócio das redes sociais, está em causa a posição de neutralidade que dever pautar a atuação das multinacionais. A questão torna-se ainda mais difícil de gerir quando a mesma plataforma da Internet tem de gerir requisitos técnicos aplicados pelo governo russo, ao mesmo tempo que tenta bloquear mentiras e factos forjados sobre a guerra – e ainda tenta acautelar os direitos da população russa.
Mykhailo Fedorov ainda ainda tentou apelar à Meta que fechasse o acesso ao Facebook e ao Instagram na Rússia, lembrando que o exército comandado pelo Kremlin tem vindo a bombardear jardins de infância e hospitais. O pedido, direcionado para Mark Zuckerberg, líder do conglomerado das redes digitais, acabou por não ser atendido. Calhou a Nick Clegg, vice-presidente da Meta para os assuntos globais, justificar a recusa no Twitter com a necessidade de não limitar a liberdade de expressão da população russa. O que pode ser entendido como uma salvaguarda da oposição ao Presidente Vladimir Putin. O braço de ferro digital não tem um fim previsível à vista.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL