O filosofo Thomas Kuhn, em meados do século XX, decidiu olhar para a ciência sobre o prisma da evolução histórica do desenvolvimento das ciências. E o que ele descobriu e traduziu na sua Teoria dos Paradigmas foi que todas as ciências se desenvolvem em quatro fases distintas: a pré-paradigmática ou pré-ciência, a ciência normal, a crise científica e a revolução científica que precede uma nova fase de ciência normal.
E chocamos de frente com a palavra Paradigma – que infelizmente perdeu muito do seu contexto científico por ter sido adoptada caoticamente pelo marketing como símbolo para qualquer mudança “significativa”. Por favor, “Sexshop ao Domicilio – uma mudança de paradigma”, não é uma mudança de paradigma! Quanto muito é uma nova alternativa na variável Distribuição do Marketing Mix.
Paradigma, em ciência, é um conceito poderoso – razão porque Thomas Kuhn é considerado um dos filósofos mais influentes do século XX, a par com Karl Popper, este último mundialmente conhecido como o pai do revolucionário conceito de Falsificação que introduziu no Método Científico de Descartes que data do século XVIII.
Tanto Kuhn como Popper são estudados na disciplina de Filosofia do 11º ano, cadeira obrigatória para todos os estudantes do ensino secundário do regime geral. Anualmente há cerca de 20.000 jovens portugueses que fazem o exame nacional de Filosofia. E curiosamente, ou lamentavelmente, poucos cursos universitários, oferecem um módulo de História e Filosofia das Ciências no seu curriculum.
Segundo Kuhn, ciência normal é uma fase caracterizada pela existência de um paradigma aceite pela maioria dos seus praticantes. A palavra-chave é “maioria”.
Um paradigma é o conjunto de teorias, conceitos, métodos e práticas que a comunidade de praticantes dessa disciplina aceita como base de trabalho, preservando obviamente os princípios da ética e da ciência com o primado da observação, que é o que distingue Ciência da Religião e dos dogmas pseudo-científicos.
A Ciência, com C grande, tem dois pilares, a perna teórica e a perna observacional. A partir da observação de fenómenos são construídos modelos que procuram explicar as suas causas e os efeitos. Quando se juntam esses modelos em classes de abstracção mais elevada, criam-se teorias, que se aplicam a classes de fenómenos, com poder explicativo e preditivo. São consideradas teorias científicas viáveis as teorias que passam o teste da Falsificação de Popper. As teorias são uma espécie de engenharia onde se juntam vários modelos para criar um produto final útil.
Mas uma coisa é Ciência, outra é as fases em que cada disciplina científica se encontra. Compreender a diferença entre as fases de ciência normal e revolucionária é fundamental. Em ciência normal há permanentes melhorias incrementais, há uma evolução dentro de um paradigma, enquanto que uma revolução, com sucesso, produz uma mudança disruptiva a essa ciência, à qual se chama mudança de paradigma. Sem mudança de paradigma, essa ciência fica estagnada na fase de Crise Científica onde só se continuam a acumular anomalias, que são observações que não são explicáveis pelo paradigma dominante, ou previsões da teoria que por muito que se esforcem não se conseguem observar.
Ver a Ciência como um todo sem considerar a situação particular das várias disciplinas científicas é um erro. O problema é que todos os políticos e financiadores de ciência só financiam ciência normal. Mesmo a ciência pré-paradigmática é também tratada como ciência normal para a classe dos políticos.
As prioridades, o financiamento e quem decide esse financiamento deveria ter em consideração a fase em que cada disciplina se encontra e, quando essa ciência se encontra em crise científica, deveria haver financiamento para ciência revolucionária, que simplesmente hoje não há.
É obvio que é durante a fase normal da ciência que a maioria dos benefícios em termos de aplicações tecnológicas aparecem. Há todo o interesse em acelerar todas as outras fases para que cada disciplina produza o mais rapidamente possível valor económico, normalmente sob a forma de tecnologia, com criação de valor para a Humanidade.
Pela mesma ordem de ideias, retardar as revoluções científicas também é uma estupidez. Um paradigma é como uma mina, no início há minério ao pontapé, mas passando um tempo o custo de extracção fica proibitivo e é melhor procurar outra mina. Hoje só há financiamento para ciência normal e pré-paradigmatica e não para ciência disruptiva.
É o caso da Física, nos dias de hoje. Não se percebe que não haja financiamento para física revolucionária. Há décadas que nada de tecnologicamente útil é produzido com base nas teorias vigentes. Alterações ao paradigma já promovem teorias não-falsificaveis por muito mais tempo do que seria expectável – a mina está esgotada. As teorias dominantes têm quase 100 anos e não faltam anomalias ou cientistas a questionar o paradigma. E, em consequência, o que se observa é uma redução geral e sistemática no financiamento desta ciência a nível mundial, o que é preocupante. Mas isso é um assunto que gostaria de desenvolver com mais detalhe numa próxima crónica.
Pelo que … Sexualidade. J
Sexualidade não é uma disciplina científica autónoma, mas é uma prática fundamental para a propagação da espécie humana e uma especialidade da Medicina chamada Sexologia. A sexualidade humana é estudada em múltiplos ramos da ciência, desde a biologia, à psicologia, à sociologia, à antropologia, à neurociência.
Mas podemos postular a existência de um paradigma dominante na sexualidade actual? Claro que sim. E como os “praticantes”, neste caso particular da sexualidade, são pessoas, não são só investigadores, esse paradigma está difundido e é aceite por biliões de humanos à escala planetária
[Já perceberam porque é mais difícil fazer uma mudança de paradigma na sexualidade do que na física teórica? É uma questão de números … ]
Chamemos aos valores e práticas aceites deste paradigma os “defaults”. Quais são os defaults que todos aceitamos, na sociedade ocidental (com mais ou menos resistência, porque excepções à regra há muitas)?
– O sexo como pecado. Com origem no Cristianismo, tipo no século 1º, onde os líderes religiosos queriam uma separação radical relativamente ao paganismo. No paganismo, sexo era uma actividade dos deuses, os quais os humanos copiavam; até havia uma Sra. Deus, pelo que homens e mulheres eram iguais, todos contentes com a sua actividade sexual livre e despreocupada. O Cristianismo inventou então Adão e Eva, onde a coitada da Eva passou a ser inferior ao Adão, o instrumento do pecado e do mal. A nudez foi banida do paraíso e culpabilizada na sociedade. Muito eficaz foi depois tornar o mecanismo de “limpar” os pecados um monopólio da Igreja. É curioso o poder das maças na história da humanidade.
É curioso também a quantidade de revistas masculinas e femininas, e publicidade em todos os meios, que nos bombardeiam com a nudez com objectivos comerciais enquanto que sexo continua um tabu – algo do qual se fala, quando o assunto é celebridades, mas que é evitado no que a nós diz respeito.
– Herdamos também a instituição do casamento, como forma de garantia de parceiro sexual sempre disponível por obrigação contratual à qual se associou a monogamia como mecanismo fundamental para garantir a passagem da propriedade para os filhos do patriarca. No entanto, se ainda no século passado, monogamia queria dizer um-parceiro-sexual-para-a vida, hoje monogamia é mais monogamish, ou seja, um-parceiro-de-cada-vez, e entre dois parceiros regulares, salve-se quem puder.
– Ainda hoje o sexo, como mecanismo para a procriação, é o que se ensina aos jovens, nas escolas. No entanto, por causa das coisas, e principalmente por causa da SIDA, para além de se ensinar como-ter-e-não-ter-filhos, também se ensina como-ter-e-não-ter-doenças. E ficamos por aqui, para que os pais (católicos) das crianças não protestem com base no argumento de que educação sexual deve ser dada em casa (onde até pode haver livros, mas raramente diálogo) e não nas escolas. Perante o drama planetário do abuso sexual, começou-se recentemente a também incluir no curriculum escolar o tema da consensualidade.
Montes de anomalias ao paradigma, não acham?
Tal como nas disciplinas científicas, o paradigma dominante continua a ser protegido pelas instituições. Quando muito é alterado pontualmente, como o aparecimento do divórcio, a legalização da prostituição, a aceitação da homossexualidade e da transexualidade, estas últimas devidas à pressão que a ciência, com toda a sua autoridade, trouxe aos valores estabelecidos da sociedade. [Obrigada, Ciência!)
Podemos então postular que também na sexualidade vivemos um período de “crise científica” com o desafio de propostas de novos paradigmas sugeridos pela Ciência, lamentavelmente ainda pouco conhecidos e muito menos discutidos.
Pegando na Antropologia, por exemplo, onde só recentemente, no início no século XXI, se começou a estudar a sério a espécie de macaquinhos Bonobos, pois estes pequenos primatas vivem no Congo, um país eternamente em guerras que impossibilitava o estudo destas comunidades em segurança.
Até lá a teoria dominante era, e ainda é, que todas as espécies de primatas são patriarcais, principalmente os chimpanzés-comum, com os quais os humanos partilham 98,7% do seu DNA. Esses parvalhões dos chimpanzés, em que os machos, maiores que as fêmeas, batem nas fêmeas, praticam infanticídio e lutam entre eles pelo poder de ter qualquer fêmea à disposição para a pratica sexual. Ring a bell?
As comunidades dos Bonobos, que também com os seres humanos partilham 98,7% do DNA e diferem em 0,4% do DNA dos chimpanzés-comum, funcionam socialmente de forma completamente diferente. São sociedades matriarcais, embora os machos sejam maiores que as fêmeas e onde os conflitos são sempre resolvidos com sexo. Aqueles pequenos primatas estão sempre a fornicar, fêmeas com machos, machos com machos, fêmeas com fêmeas, adultos com jovens, em grupo e até se masturbam sozinhos e uns aos outros, nos intervalos. É uma alegria.
A dominação feminina é conseguida com o mecanismo Sisterhood, ou seja, as fêmeas protegem-se umas às outras para equilibrar a pujança física dos machos da espécie, que vivem felizes, calmos e pouco agressivos, face à abundância de actividade sexual.
Eu cá não sou de intrigas, mas pela antropologia há dois paradigmas para a sexualidade nas espécies mais próximas dos seres humanos.
Segundo Thomas Kuhn, entre dois paradigmas cientificamente viáveis, embora haja critérios objectivos para os comparar [Consistência interna, Coerência com outros ramos científicos, Capacidade de Previsão, Precisão na aderência às observações, Âmbito de aplicabilidade, Potencial para trabalho futuro], a escolha é pessoal, porque não há uma hierarquia definida de importância para os critérios de análise.
Interessante, não acham?
Num mundo de propaganda desenfreada, bem hajam os filósofos, que ao longo dos tempos nos ajudam a enquadrar as perguntas importantes para a Humanidade e fomentam o pensamento crítico.
Leituras recomendadas:
- Livro: “A estrutura das Revoluções Científicas” de Thomas Kuhn. Um resumo pode ser lido aqui
- Sobre o comportamento de chimpanzés: o que antropólogos e primatólogos podem ensinar sobre o assunto? Eliane Sebeika Rapchan, Universidade Estadual de Maringá – Brasil [2010]
- Wikipedia
- Video: “The Surprising History of Sex and Love”, Documentário com Terry Jones.