O meu amigo pergunta se não poderíamos passar sem química e sem químicos… Será possível? Sustenhamos por um momento a respiração para não inalarmos e expirarmos produtos químicos – nitrogénio em grande parte, oxigénio o suficiente, água e dióxido de carbono os necessários – nenhum deles bom ou mau em si mesmo – e o nosso corpo irá continuar a construir e destruir moléculas em quantidades astronómicas a velocidade alucinante. Olhemos à nossa volta. É impossível não ver materiais, produtos e processos comuns, ignorados, extraordinários, ou ainda misteriosos, que não tenham a ver com química. Olhemos para o céu e para o espaço, para o mar e as suas profundezas, para as árvores, plantas, animais e rochas. Olhemos para os objectos que nos rodeiam ou que temos nos bolsos. Olhemos para os próprios bolsos, para as roupas, os móveis, as casas, as ruas. O próprio olhar tem química, assim como a mente que o interpreta. Tudo tem química: o mundo que nos acolhe, as mãos que o modificam, os braços que o sustentam, e até a morte, de onde a vida se renova, tem química.
É uma evidência que a química tem um papel fundamental e central no nosso mundo. Mas estar em todo o lado, é estar no que é bom e no que é mau, no que é comum e no que é extraordinário, no que é enfadonho e no que é maravilhoso. Por isso, a química tem-se tornado, tal como se diz da saúde, numa coisa em que a generalidade das pessoas só presta realmente atenção quando alguma coisa parece correr mal. E, numa sociedade que associa, de forma generalizada, riscos exagerados à química, há muitos mitos, preconceitos e mal-entendidos que rodeiam esta ciência e os seus resultados.
Considere-se o amianto, o titânio e o dióxido de titânio. O amianto é uma fibra mineral natural de que ninguém quer ouvir falar nem ter em casa, enquanto que o titânio e o dióxido de titânio, que são obtidos de forma artificial, são muito seguros em próteses e tintas, respectivamente, tendo também aplicações em remediação ambiental. As coisas mais perigosas do mundo são naturais, começando com a toxina da botulina até à coniína da cicuta que aparentemente levou à morte de dois caminheiros em Santarém. De fato, as notícias, fizeram menção à possibilidade de ser um envenenamento com pesticidas ou plantas. Mas pesticidas dificilmente seria, uma vez que os pesticidas com toxicidade aguda estão banidos.
A ficção da página inicial de “O Ministério da Felicidade Suprema” de Arundhati Roy, publicado em 2017, baseia-se no declínio dos abutres na região da Índia atribuído ao uso de diclofenac veterinário. Isso levou ao banimento do uso deste fármaco para animais a partir de 2005. Noutras partes do mundo, outras causas de morte são o chumbo da caça, também banido e substituído por aço, as perseguições deliberadas e a falta de alimento por falta de carcaças disponíveis. Quando Roy escreveu o texto, as soluções estavam já em evolução há mais de dez anos. O conhecimento das causas levou às restrições de uso produtos e actividades, mais ciência levou à implementação de restaurantes para abutres e desenvolvimento de produtos mais seguros.
A química é fundamental para resolver os problemas de um mundo com cada vez mais pressão humana e ambiental. Além da procura do conhecimento e do bem estar e segurança da humanidade, a sustentabilidade, a regeneração ambiental, o controlo do aquecimento global e a eficiência, tanto energética como de recursos, são problemas que preocupam a química. Através do desenvolvimento de novos materiais e processos, usando ferramentas da química verde e sustentável, a química acrescenta aos conhecidos Reduzir, Reutilizar e Reciclar, a Reformulação e Reinvenção dos processos e os Recursos alternativos. Infelizmente, algumas das soluções que vão sendo encontradas acabam por redundar em novos problemas, mas estes são quase sempre bastante menos graves do que os problemas iniciais. E para esses novos problemas vão sendo encontradas soluções renovadas, muitas vezes inesperadas, seguindo o caminho da maior eficiência e sustentabilidade e de um mundo melhor.
Nunca é demais chamar a atenção para o facto de que o conhecimento que temos do mundo que nos rodeia, assim como a qualidade de vida e a segurança que temos hoje em dia, não terem precedentes na história da humanidade. E a química tem sido uma das ciências que mais tem contribuído para isso e assim continuará no futuro se for mantido o sonho da química na sociedade, e, em particular, nos jovens.
Sérgio P. J. Rodrigues (Centro de Química e Departamento de Química, Universidade de Coimbra)
Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva