O POSTAL do ALGARVE teve acesso e publica na íntegra a missiva enviada ao Partido PAN – Pessoas, Animais e Natureza, onde a responsável pelo abrigo de animais, que acabaram por morrer carbonizados, explica detelhadamente o que aconteceu, “uma vez que estão a sair notícias a público sem que tenha sido feito qualquer contraditório”, lamenta Ana Maria Carvalho, a subscritora da carta registada enviada esta quarta-feira ao PAN.
Entretanto, o ministro do Ambiente e da Ação Climática já considerou “inaceitável” a morte de animais num abrigo ilegal em Vila Real de Santo António, sublinhando que a abertura de um inquérito administrativo vai permitir apurar responsabilidades concretas.
João Matos Fernandes referiu que há um compromisso conjunto com as autarquias, já previsto anteriormente, para fazer um levantamento de todas estas situações durante este ano.
Também a Câmara Municipal de Vila Real de Santo António anunciou que vai averiguar internamente se alguma entidade tinha conhecimento do abrigo onde mais de uma dezena de animais morreram, no incêndio. Em comunicado, o município reitera também que nem o executivo, nem a Proteção Civil Municipal, tinham conhecimento da existência do abrigo situado na localidade de Santa Rita.
“Caso o executivo do município de Vila Real de Santo António tivesse tido conhecimento de tal situação, a sua atuação tinha sido idêntica à desenvolvida no canil e gatil municipal, onde, de forma rápida e totalmente eficaz, se diligenciou no sentido de garantir a salvaguarda da vida de todos os animais que lá se encontravam [cerca de 250]”, é referido na nota.
No entanto, o município algarvio “internamente vai averiguar se alguma[s] entidade[s] tinha[m] conhecimento deste abrigo”.
Na terça-feira, o PAN denunciou a morte de “pelo menos 14 animais” – que a responsável do abrigo diz serem 12 – num abrigo ilegal no concelho de Vila Real de Santo António, na sequência do incêndio rural que deflagrou na segunda-feira no município vizinho de Castro Marim e que afetou também o concelho de Tavira.
Carta explicativa dirigida ao PAN pela responsável do abrigo de animais que morreram
Exmos. Senhores,
Tendo tomado conhecimento de que o PAN vai apresentar denúncia para apurar responsabilidades sobre a morte de canídeos no incêndio em Santa Rita, no concelho de Vila Real de Santo António, venho, na qualidade de detentora dos animais, esclarecer a situação, uma vez que estão a sair notícias a público sem que tenha sido feito qualquer contraditório.
Infelizmente, neste momento, além de ter que suportar a dor terrível de ter perdido os animais de forma tão cruel e sem ter conseguido salvá-los, tenho também que sofrer com as maledicências e injustiças que estão a surgir. Não posso deixar de explicar a verdade dos factos. Tratei daqueles 12 animais (e não 14 como tem vindo a público) diariamente com o amor e dedicação com que se tratam filhos, desde há cerca de 10 anos, alimentando, prestando cuidados veterinários e dando todo o carinho que fez deles os animais mimados que eram.
No dia 16 de Agosto de 2021, o dia da tragédia, fui alimentá-los de manhã, como sempre faço. Tudo estava normal, não havia qualquer sinal de fogo próximo, nem eu poderia prever o que estava para acontecer.
As notícias por volta da hora do almoço relatavam que o fogo na Cortelha, concelho de Castro Marim, estava controlado, embora não estivesse extinto.
Pelas 18.52 horas, como se demonstra pelo registo de chamadas que junto, a Sra. Alice Gil, da Associação Adota, ligou para Cristina Rodrigues, por saber que ela conhecia aqueles animais, e informou que lhe tinham dito que um incêndio estava a avançar para Santa Rita. A Cristina ligou-me de imediato e dirigimo-nos para o local para abrirmos as portas aos animais. Fomos desde Tavira em carros separados para salvaguardar a possibilidade de transportarmos o máximo número possível.
Eu fui à frente e fui a primeira a entrar na povoação de Santa Rita, completamente perplexa e em choque por ver tanto fumo e tantas pessoas no centro da povoação. Mais adiante, no sítio onde estavam os animais, o cenário era devastador, com fumo por todo o lado. Estava tudo a arder. Era preciso atravessar a povoação de Santa Rita e seguir em frente. Não hesitei e segui, mas a população aglomerou-se para não me deixar passar, gritando: “para onde vai? Quer morrer também?” A GNR impediu-me de prosseguir. Não se podia passar sob nenhum pretexto, nem para ir salvar os cães, porque havia um sério risco de já não voltarmos. A Cristina vinha atrás e também não pôde seguir.
Os carros começaram a aglomerar-se no local e a GNR deu ordem para evacuar o espaço, o que se tornou difícil, pois o trânsito ficou engarrafado com carros parados virados em todas as direções. Foi preciso sair dali. Deixei-me ficar para trás, sem forças, em choque e com uma dor no coração que acho que não vai passar nunca. Já não conseguia conduzir. Insisti para que me deixassem ir ver os cães, mas foi impossível. Um Senhor da GNR tomou conta do meu carro, tentou que eu me acalmasse e recomendou que no dia seguinte, quando fosse lá, não deveria ir sozinha. Senti que me estava a preparar para o pior.
Acabei por ter que sair, conduzindo lentamente na imensa fila de carros que tentava sair dali, sabe Deus com que dor…
Nessa noite, eu e a Cristina combinámos que assim que nascesse o sol estaríamos lá. E assim foi. Depois de uma noite sem descanso, saímos de Tavira às 6 e tal da manhã, alimentando ainda uma esperança de que alguém os tivesse ajudado a escapar.
Quando lá chegámos, deparámo-nos com o cenário horrendo que não vou esquecer enquanto viver. Penso que não é necessário descrever o que sente nesse momento alguém que se dedicou a eles com tanto amor durante anos. Só mentes perversas poderão duvidar disso…
Pouco depois de termos regressado a Tavira, a Cristina ligou-me a dizer que a Sra. Alice Gil a contactou dizendo que estava no local e perguntando: “Então não vêm ver a vossa obra?!”
Não sei como se pode ser tão cruel num momento de dor como este!!! Essa senhora acusou-nos de termos tido “20 horas para ir abrir a porta aos animais”! Não compreendo em que se baseia para afirmar tal coisa! O fogo não esteve em Santa Rita durante 20 horas!!! Ela própria só nos informou por volta das 19 horas!
Por isso, não sei que mais eu poderia ter feito para salvar aqueles inocentes, se não me foi dado conhecimento antes de que o fogo estava naquele local. Mas concordo plenamente que apurem responsabilidades, porque as mesmas pessoas que estão a afirmar que eu poderia ter salvo os cães antes, se sabiam do fogo deveriam ter arrombado as portas do abrigo ou cortado as redes para que eles saíssem, evitando a morte cruel que tiveram, sem poder fugir. Cada vez que penso nisso, acho que não vou aguentar mais…
A obrigação de salvar não é só do detentor ou de quem conhece os animais, mas sim de quem está em condições de agir mais rápido. Então, quem achar que houve “20 horas” para salvar os animais, deve explicar porque não o fez.
E se estas pessoas que agora criticam tanto também não souberam antes que o fogo estava em Santa Rita, porque me exigem a mim que o saiba?
Outra coisa que não compreendo e que se devia apurar é porque motivo os habitantes da casa ao lado do abrigo (a cerca de 50 metros) não pediram ajuda para os animais nem tentaram arrombar as portas ou cortar as redes. Será que pediram ajuda aos bombeiros? Quando cheguei a Santa Rita, os bombeiros estavam a vir daquele lado do abrigo, mas foi impossível dirigir-lhes a palavra porque surgiram pessoas a correr e a gritar que fossem depressa porque estava uma casa a arder e arrancaram rapidamente. Foi um caos!
Também não é justo que se diga que nem eu nem a Cristina informámos as autoridades da existência do abrigo. Não podíamos informar as autoridades se não nos foi dado conhecimento que havia fogo no local. Além do mais, o abrigo era do conhecimento de muitas pessoas e entidades, como por exemplo as que abaixo indico e seria importante saber a que horas tomaram conhecimento de que o fogo se encontrava em Santa Rita:
⇒ O veterinário municipal de Vila Real de Santo António / Castro Marim e Tavira, que já tinha estado anteriormente no local;
⇒ A funcionária do canil municipal em Castro Marim, D. Nélia Brito (que ligou para a Cristina, pelas 20.58 h do dia 16, a perguntar como estava a situação dos animais em Santa Rita);
⇒ A Câmara Municipal de Tavira (quando cheguei a Santa Rita encontrava-se lá o Sr. Vereador do Ambiente, José Manuel Guerreiro, e penso ter visto a Sra. Veterinária Municipal Dra. Sandra Mealha);
⇒ A D. Alice Gil, que avisou sobre o incêndio cerca das 19 horas do dia 16;
⇒ A GNR também já tinha estado no local noutras ocasiões, pelo que não era um local incógnito;
⇒ Várias pessoas das relações da D. Alice Gil, que frequentemente vão ao local e fazem críticas destrutivas e já fizeram denúncias anteriormente, ignorando completamente os sentimentos dos animais e o facto de estarem bem tratados e felizes;
⇒ Os habitantes da casa que fica a cerca de 50 metros. Sei que a proprietária dá pelo nome de Dª Maria, mas não tenho nenhum contacto da senhora porque não costumamos falar. Vi hoje numa reportagem na TVI cerca da hora de almoço que a tv falou com esta senhora, a qual terá dito que tentaram salvar os animais, mas não foi possível devido ao vento forte que dificultou o trabalho dos operacionais. Compreendo estas dificuldades para extinguir o incêndio, mas continuo a não compreender como o vento pode dificultar que se arrombem as portas ou que se corte a rede. Procuro explicações na minha mente e nada me ocorre. Não quero pensar que tenham tido medo dos animais por verem alguns cães grandes… Eles não faziam mal a ninguém e só iriam fugir para se libertar.
Penso que será também importante explicar qual o motivo dos animais se encontrarem naquele local.
Aqueles animais foram alguns dos primeiros resgatados em 2011 por uma associação de Tavira denominada 3AT Amigos dos Animais de Tavira, da qual comecei por ser voluntária e mais tarde acabei integrando a direção juntamente com Cristina Rodrigues. Já há vários anos que a associação deixou de operar e de recolher animais (pelo menos 8 anos), mas alguém tinha que cuidar dos animais que restaram, quando muita gente abandonou tudo. Por isso referi antes que sempre tratei daqueles animais todos os dias, durante todos estes anos e acabei por assumi-los como meus e registá-los em meu nome.
O primeiro local onde os animais viveram, desde 2011, foi um terreno na Asseca, concelho de Tavira, onde foram acolhidos cães em situações aflitivas que entretanto surgiram e para as quais não havia outra alternativa, devido à inexistência no concelho de um abrigo com condições para que os animais lá pudessem permanecer, situação que se foi prolongando ao longo dos anos, apesar da lei determinar que cada concelho deve ter um centro de recolha obrigatória, o qual deveria estar preparado para albergar animais durante longos períodos de tempo, se necessário.
Os animais viveram ali em paz até finais de 2013. Apenas não tiveram paz numa noite do Verão de 2012 em que um incêndio se aproximou do local e eu, a Cristina e diversas outras pessoas passámos toda a noite a recolhê-los (porque entretanto, daquela vez, já alguém lhes tinha aberto as portas) e conseguimos salvar todos. Ironia cruel do destino… Eu passaria em claro as noites que fosse preciso para salvá-los e desta vez não consegui…
Mas digo que viveram em paz na Asseca até finais de 2013, porque muitas coisas mudaram após as eleições autárquicas de 29 de Setembro de 2013. Lembro-me da data porque Cristina Rodrigues integrou uma lista da oposição como independente, com o intuito de que Tavira tivesse um canil e gatil municipal, que solicitou ao cabeça de lista, Dr. José Fernandes Estevens, intenção essa que integrou o programa eleitoral.
Essa lista saiu derrotada e essa altura coincidiu com um momento em que a cooperação e comunicação connosco que existia por parte da Câmara Municipal de Tavira cessou e começaram a surgir denúncias em relação a todos os locais onde tivéssemos animais, que foram classificadas como anónimas.
Poucos dias após as eleições, a senhora idosa proprietária do terreno em Asseca comentou que “uns senhores da câmara tinham ido lá e tinham perguntado se os cães ladravam muito, se não fugiam, se não tinham bebés,…” A senhora terá respondido que estava tudo bem, que não havia problema nenhum.
Pouco tempo depois, surgiu uma reclamação por parte de uma senhora residente do outro lado da ribeira, que se queixava de que os cães ladravam muito e que teriam que sair dali.
Essa senhora pressionou bastante os proprietários do terreno para que os cães fossem retirados. Fiquei muito surpreendida com esta situação porque os animais estavam ali havia cerca de 3 anos e eram os mesmos, o ruído não tinha sofrido alterações e nunca houve reclamações. Mas a pressão continuou e a alternativa que surgiu foi alojá-los rapidamente em Santa Rita, onde foi construído o abrigo, de acordo com os meios financeiros que foi possível conseguir no momento, e com muitas dificuldades, mas era preciso alojá-los em algum local e sempre com a esperança de que fosse provisório, até que um refúgio animal surgisse em Tavira.
Após a saída daqueles animais, os proprietários do terreno em Asseca colocaram outros cães no mesmo local, que ladravam tanto ou mais que os anteriores, mas as pressões exaustivas dos reclamantes não mais se fizeram ouvir.
Entretanto surgiu uma nova esperança de ter um refúgio em Tavira para aqueles animais poderiam ir viver. A Fundação britânica Nina Pearson procurou um terreno para comprar. Encontraram um que tinha as condições ideais, em Fonte Salgada. Já vedado, com uma área considerável e afastado da zona residencial. Chegaram a acordo com o proprietário pelo preço de 180.000,00€. O presidente da fundação veio expressamente de Inglaterra para ver o local e aprovou. Aproveitou a visita para ver os cães, em Santa Rita, e trouxe a filha menor. Adoraram os animais e acharam-nos bem nutridos e felizes. Apesar das condições do alojamento não serem as ideais, perceberam o esforço que foi feito por eles e sabiam que esse problema seria passageiro porque estava assente que eles iriam para o novo refúgio, que funcionaria também como quinta pedagógica onde se organizariam passeios e visitas de estudo para sensibilizar os jovens para a causa animal e para o respeito pela Natureza. Os encargos das obras a realizar também seriam a cargo da fundação, bem como os custos inerentes à legalização.
E no que se refere à legalização, antes de assinar o contrato promessa, a Fundação contactou a Câmara Municipal de Tavira para saber da viabilidade de legalizar um refúgio para animais naquele local, condição essencial para que realizassem o investimento. O Sr. Vereador do Urbanismo, João Pedro Rodrigues, garantiu que se da parte da CCDR não houvesse qualquer objeção, da parte da Câmara também não haveria.
A resposta demorou algum tempo, até que, em Dezembro de 2014, foi emitido um parecer negativo por parte da CCDR.
Após muita dificuldade e insistência foi possível conseguir uma reunião com o Sr. Vereador do Ambiente, José Manuel Guerreiro, a quem foi pedido um espaço para que os animais pudessem lá viver e a resposta foi que a Câmara não tinha local nenhum. E corroborou o que foi dito pelo Sr. Vereador do Urbanismo: “se da parte da CCDR não houver nenhum obstáculo, da nossa parte também não haverá”.
Numa reunião na CCDR/Algarve com a Sra. Arquiteta Maria Armanda Reis, que se mostrou bastante sensibilizada em relação aos problemas da causa animal, foi informado que, face à legislação que temos, se alguém perguntar qual o local em que é permitido construir um refúgio para animais, muito dificilmente se conseguiria indicar um, porque os obstáculos para essa finalidade são sempre muitos.
Contudo, referiu que está na mão dos responsáveis em cada organismo encontrar alternativas aos obstáculos da lei, uma vez que em diversos casos é possível encontrar soluções dentro da legalidade.
Sobre o local objeto da pretensão da fundação inglesa apontou um caminho, que seria o de pedir uma alteração simplificada, procedimento que dependeria da Câmara Municipal e foi garantido que a resposta seria positiva.
Contudo, perante isto, o Sr. Vereador do Urbanismo, informou que as coisas não eram assim tão simples como a CCDR dizia e que era necessário estudar o assunto com o Departamento Jurídico.
O tempo foi passando. Após muitas insistências, o Sr. Vereador transmitiu que o projeto não era viável porque o PDM não permitia.
Tanto a CCDR como vários entendidos no assunto afirmaram que se houvesse boa vontade da Câmara o problema poderia ser ultrapassado e que haveria sempre a hipótese de alterar o PDM, de forma a admitir o projeto pretendido, mas tal não aconteceu.
Foram então realizados vários contactos, entre eles com o PAN, que tentou marcar uma reunião na Câmara, mas nunca obteve resposta, apesar das insistências, até que o próprio PAN aconselhou, via telefone, que era melhor procurar um terreno fora de Tavira. O PAN ainda tentou conseguir um terreno, mas sem resultado, como se comprova pelos e-mails que junto.
A Fundação inglesa cansou-se de realizar tantos esforços e contactos durante anos e de ter os 180.000,00€ retidos a aguardar um projeto que não iria concretizar-se e desistiu da compra do terreno.
Por isso, quando se insiste tanto na divulgação de que se tratava de “um abrigo ilegal” deveria ter-se sempre em consideração estas dificuldades e deveria pensar-se porque é que há espaços ilegais com animais e tentar alterar a legislação, em vez de atacar as pessoas que tentam a todo o custo abrigar esses seres inocentes que não percebem nada de leis nem dos meandros criados pelos humanos. Eles só querem ter o seu cantinho em paz e amor. E foi o que aqueles animais sempre tiveram, com muito esforço e muita luta.
As manifestações de alegria e de ternura que me dedicaram diariamente ao longo dos anos dão-me a certeza de que não falhei com eles. Apenas não pude cumprir o que lhes prometi no dia 16 de manhã. Depois dos mimos, disse-lhes: “amanhã há mais festas”. No dia seguinte não houve mais festas. No dia seguinte sofri um dos maiores choques da minha vida e não vou esquecer nunca… Por isso peço a todos os que se ocupam da maledicência que respeitem o sofrimento dos outros e, pela memória deles, agradeço sinceramente que apurem as verdadeiras responsabilidades.
Assina, Ana Maria Carvalho a 18 de agosto de 2021