Agasalhei-me, desinfectei as mãos, coloquei a máscara, verifiquei se a caneta que levava escrevia bem e, apesar da apreensão, fui votar. Houve um tempo em que, por ter nascido mulher, esta acção não seria, de todo, possível. Para que eu hoje possa votar, muitas mulheres lutaram, algumas delas perdendo a vida. Cumprir o dever cívico é, pois, para mim, honrar essas heroínas, fazer o pouco que está ao meu alcance para lhes demonstrar que a sua coragem não foi em vão. Mas fui votar sob uma nuvem negra, e não era apenas o perigo da pandemia que me afligia…
Na capa da revista Sábado (14 a 20 janeiro 2021) pode ler-se: “ATENTADO AO ESTADO DE DIREITO. Pela primeira vez em democracia, o Ministério Público liderado por Lucília Gago mandou seguir e fotografar jornalistas e vasculhou as suas contas bancárias. A operação foi ordenada por agentes encobertos da PSP para devassar fontes de informação.” O Editorial de Eduardo Dâmaso esclarece que estas acções foram levadas a cabo sem cobertura legal e violando o direito ao sigilo profissional. Este atentado contra a liberdade de imprensa faz-nos recordar outros tempos bem negros da nossa história, que a revolução de Abril se orgulha de ter terminado… Mas será realmente assim?
Há eleições presidenciais cá dentro, e Portugal assume desde o início de Janeiro a 4ª Presidência portuguesa do Conselho da União Europeia. Contudo, é uma presidência que se inicia de forma turva, de novo evolvendo o Ministério Público, com a polémica sobre a nomeação do procurador europeu. A Procuradoria Europeia ocupa-se, precisamente, de casos de fraude e corrupção. Como pode a nomeação portuguesa deste cargo realizar-se debaixo da suspeita destes crimes? A perplexidade é tanto maior precisamente porque o cargo de Procurador Europeu é aquele cuja função é zelar pela justiça e transparência!
Revejamos os factos. Baseando-se numa análise curricular o Conselho Europeu tinha elegido Ana Carla Almeida ―magistrada responsável no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) pelos processos relativos a fraudes nos fundos comunitários ―mas o governo português, veiculando a decisão do Ministério Público, intercedeu colocando em primeiro lugar o magistrado José Guerra. A comunicação social revelou que esta ultrapassagem se baseou numa carta enviada para a UE, em Novembro de 2019, contendo dados falsos sobre o magistrado preferido pelo governo português para o cargo. Os “lapsos”, como de forma eufemística se chamou a estas mentiras, foram considerados irrelevantes.
De vários quadrantes políticos surgiram pedidos de esclarecimento. Um eurodeputado português apresentou, inclusivamente, uma queixa à Provedora de Justiça Europeia sobre esta polémica. Emily O’Reily considerou o assunto “preocupante”, admitindo a possibilidade de se abrir uma investigação, caso a Comissão e o Conselho europeu não obtivessem os devidos esclarecimentos.
A organização portuguesa Transparência e Integridade reiterou o pedido de acesso a documentos feito ao Ministério da Justiça a propósito deste caso. Contudo, a 6 de Janeiro, o governo recusou alegando que os documentos do processo são “actividade política”. Nas palavras da actual presidente da Transparência e Integridade, Susana Coroado, “O Governo deve estas informações aos portugueses e aos nossos parceiros europeus. E se, quer a ministra da Justiça quer o primeiro-ministro estão tão seguros de terem procedido da melhor forma, sótêm de publicar todos os documentos, como a Transparência e Integridade lhes pediu e a lei os obriga, para que toda a verdade seja conhecida”. (https://transparencia.pt/novo-pedido-documentacao-completa-escolha-procurador-europeu/ Consulta a 23 de janeiro)
Entretanto, o nosso Primeiro-Ministro veio reiterar a confiança política na Ministra da Justiça, “pelas suas próprias razões”. Dias depois afirma no parlamento que o caso está encerrado “não queiram fazer mistérios onde eles não existem” rematou, não dando mais explicações. Porém, devido a uma denúncia apresentada pela Ordem dos Advogados, a PGR continua a investigar.
Estando ou não o caso devidamente encerrado, esta polémica levanta questões pertinentes sobre o Estado de Direito:
– A reserva do governo e do parlamento em se imiscuir neste caso deveu-se ao respeito pela divisão dos poderes legislativo, executivo e judicial, ou ao receio de se enfrentar ao corporativismo do Ministério Público?
– Pode um dirigente da ResPública ter “as suas próprias razões”?
Para a primeira questão não tenho por onde procurar respostas, mas a segunda é do foro de reflexão de todos nós, cidadãos da República. Parece-me que um político não pode ter “as suas próprias razões”, pelo contrário, tem o dever de justificar todas e qualquer umas das supostas razões, tanto ao povo que o elegeu como aos que não o elegeram mas se submetem porque a maioria assim o decidiu. As “suas próprias razões” os senhores políticos são livres de as ter nas suas próprias casas quando, justamente, não estão em exercício político. Se um político recusar um cozinhado “pelas suas próprias razões” ninguém tem nada que inquirir sobre o seu palato ou idiossincrasia. É do foro privado. Mas as decisões políticas são públicas ―respública que dizer coisa pública ― portanto nossa, de modo que temos direito a perguntar e a querer conhecer até à exaustão as razões das decisões que nos afectam a todos.
Aristóteles na Política, defende sem reservas que “uns nasceram para obedecer e outros para mandar”. Portanto, que nem se lhes ocorra aos primeiros pedir razões aos segundos. Quando isto acontece ―como quando em plena guerra de Tróia, Tersites, um simples homem do povo, resolve levantar a voz defendendo o regresso a casa, cansado de montar cerco durante 10 anos e farto de dos caprichos de Agamemnon, ― a resposta não se fez esperar: Ulisses deu-lhe com o ceptro na cabeça e Tersites acabou desprezado e humilhado. Que sirva de lição! Os que nasceram para obedecer não devem imiscuir-se nas deliberações dos que nasceram para mandar!
A corrupção, a falta de transparência, este não se sentir obrigado a explicar decisões que são do foro público aos cidadãos da República, tem contribuído para o descrédito da classe política e consequente descontentamento e até alienação dos cidadão relativamente à causa pública. A pandemia não chega para justificar os 60.7% de abstenção nas eleições presidenciais que acabam de realizar-se no nosso país, porém, a recente direita radical obteve 11,9% dos votos, ocupando um diria preocupante 3º lugar nesta corrida às urnas.
Temos exemplos históricos de como o descontentamento social com um regime democrático ineficaz levou ao poder regimes extremistas, por exemplo, na Alemanha Nazi. É como cidadã apartidária que deixo aqui o meu apelo à reflexão sobre a relação entre estes 3 factores: a corrupção, falta de transparência e corporativismo; o descontentamento da sociedade civil; a ascensão dos regimes radicais e extremistas de discurso populista. Quase 30 séculos depois da Ilíada é urgente que parem de nos tratar como a Tersites!
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* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico