Houve um aumento exponencial do número de pedidos de apoio alimentar desde o início da pandemia. E de Março do ano passado até hoje, registou-se um crescimento global da operação de assistência às famílias necessitadas da ordem dos 74, 2 por cento.
Na entrevista ao POSTAL, o responsável do Banco Alimentar no Algarve, Nuno Alves, revela que o ano de 2021 é um grande ponto de interrogação. Na sua opinião há uma pobreza estrutural no nosso país da ordem dos 18 a 20 por cento, que o prolongamento da crise pôs a descoberto. Em menos de um ano, o Banco Alimentar distribuiu mais três mil toneladas de produtos alimentares, abrangendo para cima de 26 mil pessoas.
Entrevista e fotos Ramiro Santos – Jornalista
“Tem havido uma resposta extraordinária da sociedade a esta situação social grave que não se sabe quando pode terminar”
P – Um ano depois do início da pandemia, que balanço faz no que respeita à quantidade de produtos alimentares distribuídos pelo Banco Alimentar no Algarve, comparativamente com o período anterior?
R – Antes da pandemia, o Banco Alimentar distribuía no Algarve regularmente cerca de 2 mil toneladas por ano, e durante o ano de 2020, entre Março e 31 de Dezembro, subiu para 3,3 mil toneladas, o que representa um valor de três milhões e meio de euros, correspondendo a um crescimento de um milhão e meio de euros de um ano para o outro, ou seja, quase o dobro. Notou-se uma diferença gigantesca se verificarmos que o número de pessoas beneficiadas subiu de 16 mil em 2019 para mais de 26 mil no ano passado. No que respeita às instituições que vêm abastecer-se ao Banco Alimentar, passaram de 104 para um total de 119 no mesmo período. Há, portanto, um crescimento global da operação da ordem dos 74, 2 por cento.
P – Como pode definir o perfil das pessoas que hoje procuram assistência alimentar? Nota-se um empobrecimento crescente em classes que não solicitavam qualquer tipo de ajuda antes da pandemia?
R – Sentimos que há claramente uma alteração do perfil das pessoas que procuram o Banco Alimentar. As 16 mil pessoas que vínhamos a apoiar antes, integravam um grupo que podemos classificar de probreza estrutural. Agora, o número atual de 27 mil casos, incluindo já os números do mês de janeiro são na sua maioria de pessoas que cairam em situação de desemprego, que tinham negócios e que, no fundo, tinham o seu rendimento garantido. A situação de pandemia levou ao encerramento de empresas, a despedimentos, ao lay off, ou seja, a situações de perda total ou parcial dos seus rendimentos, havendo a considerar ainda os casos que não reunem as condições para receber os apoios sociais do estado. Tendo em conta que este tipo de população tinha as suas contas em dia, o que se sente é que as pessoas começaram a fazer um esforço enorme para cumprir com os seus compromisso – renda da casa, carro etc – acabando por deixar cair as coisas mais essênciais como a alimentação, por exemplo. A classe média no seu todo, que antes não necessitava de apoio alimentar, acabou por sofrer com esta crise porque esta situação já se arrasta há um ano e quem tinha o seu pé de meia, já o gastou. Há novos pobres em Portugal.
Portugal confronta-se com uma taxa de pobreza estrutural da ordem dos 18 a 20 por cento. Isto é inaceitável
P – A ideia generalizada de que o Algarve é uma região rica, contribuiu de algum modo para esconder alguma pobreza envergonhada?
R – Pelos indicadores da União Europeia, o Algarve é, de facto, considerada uma região rica, mas a realidade é igual em todo o país. Nós temos um problema estrutural em Portugal que são os salários baixos e a precariedade dos contratos de trabalho. E é nisto que reside a base da pobreza no nosso país. Há pessoas – e temos elementos sobre isso – que trabalhando em condições normais e fora desta situação de crise, não conseguem rendimentos suficientes para assegurar a sua alimentação. Não é por acaso que em situações normais, Portugal confronta-se com uma taxa de pobreza da ordem dos 18 a 20 por cento. Isto é absolutamente inaceitável.
Já detetámos situações irregulares na distribuiçao alimentar o que levou à suspensão e mesmo exclusão de algumas instituições
P – Já disse que o número de pessoas em situação de carência subiu significativamente e pergunto-lhe se têm obtido resposta adequada da sociedade e das empresas nas ajudas alimentares. Quem são os vossos doadores?
R – Hoje não temos as campanhas tradicionais de recolha e vivemos, por isso, de doações generalizadas. Promovemos campanhas de vales de supermercado e campanhas ‘on line’ que receberam o melhor acolhimento. Além disso, é importante salientar que ao longo de todo o ano de 2020 houve um contributo muito elevado em dinheiro por parte de particulares e empresas, que nos permitiram através da Federação fazer as compras que são depois distribuídas pelos diversos Bancos no país. Temos um conjunto de viaturas que fazem diariamente a recolha de produtos junto dos supermercados e do Mercado Abastecedor do Algarve, e uma outra fonte que é fundamental que é a Rede de Emergência Alimentar.
Esta Rede foi criada quando surgiu a pandemia com o propósito de ajudar as pessoas a serem encaminhadas para o apoio social, dado que os Bancos Alimentares não fazem a assistência direta às populações, que é feita através das diversas instituiçoes como as misericórdias. Este trabalho foi tal maneira gigantesco que, ao fim de duas a três semanas, criou a sua própria equipa de emergência, com nove voluntários organizados por concelhos e assim que recebem pedidos de ajuda, fazem o devido encaminhamento sempre em articulação com as instituições protocoladas e os municípios.
Aquilo que mais nos surpreendeu, por via da Rede de Emergência Alimentar, foi que as mais diversas empresas, fundações e empresas internacionais, começaram a canalizar donativos que ao longo deste período de menos de uma ano gerou mais de quatro milhões de euros em dinheiro em todo o país. Esse dinheiro serviu para a Federeção proceder às compras de produtos que depois distribuía pelos Bancos consoante as necessidades sinalizadas. Para o Algarve – que recebeu 125 mil euros de doações em dinheiro – isto foi fundamental porque sem esta ajuda da Rede de Emergência nós não conseguíamos adquirir aqueles produtos que normalmente chegavam pelas campanhas habituais junto dos diversos estabelecimentos comerciais. Esta reação da sociedade foi extraordinária, porque raramente recebemos em dinheiro para comprar alimentos, mas revela que todos perceberam que o país estava a viver uma situação demasiado grave e responderam de uma forma a todos os títulos louvável.
P – A nível internacional que tipos de apoio vos chegam, para além de algumas empresas que referiu?
R – Os apoios internacionais são raros – por vezes chegam alguns provenientes da Federação Europeia – mas são pouco significativos porque Portugal acabou por ter uma capacidade de resposta e autonomia bastante grande para gerir a sua própria situação. Convém, no entanto, assinalar que no caso do Banco Alimentar, estávamos a distribuir cerca de um milhão de quilos de alimentos no âmbito do Programa Europeu de Apoio às pessoas carenciadas, que em Portugal é gerido pela Segurança Social e que no caso do Algarve e de outras regiões, são os Bancos que asseguram a parte logística e operacional.
Trabalhamos com 117 instituições e sabemos o número de pessoas que estão a receber a ajuda alimentar
P – Existe algum plano de acompanhamento que garanta que os donativos alimentares chegam às pessoas a que verdadeiramente se destinam?
R – Estamos convictos que sim. Trabalhamos com 117 instituições e conhecemos o número de pessoas que estão a receber a ajuda e, no caso do Programa Europeu, todos os casos são validados pela Segurança Social e não há duplicação porque o sistema não permite essa situação. Mais do que o Banco Alimentar, são as instituições que têm a obrigação de fazer a sinalização e garantirem que os alimentos cheguem a quem mais precisa.
Se me perguntar se tenho a certeza de que 100 por cento dos alimentos chegam ao seu destino, a minha resposta é se calhar não chegam, mas como em qualquer projeto que envolva pessoas há sempre a possibilidade de erros e desvios. Temos uma equipa de 45 voluntários a acompanhar e visitar as instituições com as quais temos protocolos, e pedimos à comunidade que nos alerte para os casos suspeitos de situações irregulares. Posso dizer-lhe que ao longo dos anos já detetámos diretamente ou por interposta pessoa casos desses e acabámos por atuar. No limite já levou à suspensão de acordos e à exclusão de algumas instituições, tendo havido mesmo situações gravosas.
P – Não se sabe qual vai ser a evolução desta situação pandémica nem quanto tempo é que pode ainda demorar, mas pergunto-lhe quais são as suas expetativas?
R – O processo de vacinação está em curso, vêm aí mais testagens mas a imunidade de grupo só deverá ser possível atingir no último trimestre do ano. Independentemente disso, o que falta saber é quais serão os danos económicos e sociais que ficaram na comunidade, e se as empresas que fecharam foram ou não apoiadas e se conseguiram ou não garantir o seus postos de trabalho. Vão voltar a reabrir e a funcionar quando se voltar a uma situação de normalidade, ou temos uma franja de empresas que já não voltarão a abrir? Isto é que vai ditar o futuro. Este ano de 2021, vai ser um enorme ponto de interrogação.
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