Uma peça inédita de grandes dimensões, considerada pela família de Almada Negreiros “a pedra no sapato” do espólio do artista, está a ser restaurada e vai poder ser vista pelo público, depois de 80 anos guardada no antigo atelier.
Neste momento, a peça, datada de 1950, encontra-se nas mãos dos especialistas do Laboratório José de Figueiredo, em Lisboa, para ser restaurada, e tem como título atribuído “Estudo em fio dos painéis de S. Vicente”.
Guardada durante décadas a sofrer a degradação do tempo, tem quase dois metros de altura e largura, e apresenta desenhos e reproduções fotográficas dos icónicos painéis do século XV, fios de algodão e arame, características únicas agora enaltecidas por um restauro e estudo aprofundado.
“Do espólio que nós temos na família, esta é capaz de ser a ‘pedra no sapato’ mais complexa, porque tem uma dimensão bastante grande, necessitava de um restauro multidisciplinar, e de um estudo paralelo. Reunia muitas condições que nunca tínhamos conseguido até hoje”, disse à agência Lusa Rita Almada Negreiros, neta do artista.
Em outubro, esta peça, inspirada nos Painéis de São Vicente, obra maior da pintura europeia do século XV, da autoria do pintor português Nuno Gonçalves, irá ser exibida pela primeira vez no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), no âmbito de uma exposição que resulta de uma investigação desenvolvida por Simão Palmeirim e Pedro Freitas.
“Esta peça esteve desde os anos 1950 no mesmo sítio, pousada onde Almada a deixou, e foi-se degradando, sofrendo com o passar do tempo, o envelhecimento dos materiais, num atelier prefabricado em madeira, em Bicesse, que ainda existe, e, onde havia oscilações de temperatura, e de humidade”, relatou, sobre as condições do espólio.
Para grande contentamento das netas de Almada – Rita e Catarina – que guardam o espólio do artista multifacetado, falecido em 1970, esta peça está finalmente a ser restaurada, e poderá ser exibida ao público, num museu.
Esperam ainda que possa ficar em depósito no MNAA, para sua própria proteção, e ser estudada pelos interessados.
Rita Almada Negreiros mostrou uma grande satisfação pela concretização do restauro, uma oportunidade conseguida, “graças ao Laboratório José de Figueiredo, à equipa multidisciplinar, e à exposição que se vai realizar no Museu Nacional de Arte Antiga”.
Também sublinhou a importância da realização de exaustivos estudos prévios, pelos investigadores Simão Palmeirim e Pedro Freitas, especialistas nas áreas de pintura, geometria e matemática: “Há vários anos trabalham sobre o espólio [de Almada Negreiros], e já conseguiram deslindar estes traçados geométricos, para fazer o restauro ponto a ponto para esta peça”.
“Foram muitos anos de espera, e já quase tinha perdido a esperança”, disse à Lusa, emocionada.
José de Almada Negreiros (1893-1970) – figura ímpar do modernismo português do século XX – aplicou-se, ao longo da vida, a uma grande diversidade de meios de expressão artística, desde o desenho e a pintura, mas também o ensaio, romance, poesia, dramaturgia, e até o bailado.
Ainda jovem, dedicou-se ao desenho de humor, e ganhou notoriedade com a escrita interventiva e literária, nomeadamente através de revistas como a Orpheu e Portugal Futurista, e a novela “A Engomadeira” (1917).
Viveu em Paris e em Madrid, regressou a Portugal, foi casado com a também artista Sarah Afonso, conviveu com Fernando Pessoa e com escritores e artistas como Mário de Sá-Carneiro, Amadeo de Souza-Cardoso, Santa-Rita e o casal Sonia e Robert Delaunay, entre outros.
Esta peça, que será agora exibida ao público pela primeira vez, tem a particularidade de ter sido inspirada pelos Painéis de São Vicente, o políptico que fascinou Almada desde a primeira vez que a viu, de tal forma que fez um pacto com Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita para a estudarem até ao fim da vida.
Desafortunadamente, os outros dois artistas viriam a falecer em 1918, mas Almada continuou o seu propósito, e dedicou várias décadas à promessa, criando uma teoria para explicar os enigmas do conjunto de pintura antiga.
Imaginou a disposição de mais de uma dezena de pinturas num só grande retábulo, que afirmava ter sido projetado para o Mosteiro da Batalha, resultando desses seus estudos uma vasta produção artística.
Rita Almada recordou que, infelizmente, devido ao seu estado, as peças não puderam ser exibidas na exposição antológica “José de Almada Negreiros – Uma Maneira de ser Moderno”, que a Fundação Calouste Gulbenkian lhe dedicou, em 2017, com mais de 150 obras.
“Agora, vai ter um destaque especial na Sala do Teto Pintado do Museu de Arte Antiga”, disse, sobre a exposição que é inaugurada a 15 de outubro, com o título “Almada Negreiros e os Painéis – um retábulo imaginado para o Mosteiro da Batalha”, com peças em que o artista apresenta a sua interpretação geométrica de várias pinturas do museu, entre as quais os próprios painéis de São Vicente.
Pela primeira vez, serão apresentadas duas obras de grande dimensão – uma de 1950 e outra de 1960 – completas, que aliam fotografia, desenho e materiais têxteis, e marcam momentos importantes da pesquisa de Almada, bem como alguns estudos preparatórios do artista.
Esta exposição é complementada por uma outra, dedicada ao mesmo tema, no próprio Mosteiro da Batalha, a inaugurar na mesma altura, sob o título “Almada Negreiros e o Mosteiro da Batalha – quinze pinturas primitivas num retábulo imaginado”, e tem também como comissário Simão Palmeirim.
Simão Palmeirim e Pedro Freitas, autores destes estudos sobre Almada, são investigadores de centros universitários que trabalham com o Projeto Modernismo.pt, respetivamente, do Centro de Investigação e de Estudos de Belas-Artes (CIEBA)/Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT), da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT), da Universidade de Lisboa.
Ambas as exposições vão ser acompanhadas pela edição de catálogo autónomo, com textos que resultam da recente investigação sobre o tema.