Nos dias de hoje discute-se muito a necessidade de preservação do património cultural, valorização do passado e memória colectiva das cidades. Esta necessidade do ser humano em preservar o seu passado aplica-se não só ao acervo arquitetónico, mas a todas as formas de manifestações culturais de uma sociedade. Por trás das formas construídas pelo homem, podem-se distinguir uma série de normas subjacentes, implícitas e geralmente inconscientes na mente colectiva que determinam os valores e as categorias do que é bom ou mau, correcto ou incorrecto, belo ou feio, na produção de artefactos ou objectos culturais.
Património e o crescimento das cidades: a importância de uma reflexão constante
O património arquitetónico representa uma produção simbólica e material, carregada de diferentes valores e capaz de expressar as experiências sociais de uma sociedade. Mas devido ao rápido e desordenado crescimento das cidades contemporâneas, com uma progressiva perda e descaracterização do património histórico, traz à tona uma importante reflexão acerca da constante necessidade de transformação dos espaços urbanos, juntamente com implicações referentes à qualidade ambiental e preservação do património construído.
As cidades não são apenas lugares onde se ganha dinheiro, não servem apenas de dormitório ou de local de trabalho para os seus habitantes. Nelas vivem seres humanos que possuem memória e são parte integrante da história. Por isso, não passa despercebido pela população das cidades a destruição da casa de seus antepassados, de antigos cafés, cinemas, teatros e outros edifícios históricos ou de valor significante. Toda essa destruição de bens culturais para dar lugar ao automóvel, aos gigantes de vidro e betão, tornam as cidades sem identidade, poluídas, sem emoção e os seus habitantes perdem a identificação com o local onde vivem. A falta de valorização do património cultural, causada pela realidade económica, social e política põe em risco não apenas a memória colectiva, mas também o poder de realização e de expressão verdadeiramente cultural da comunidade.
Nas propostas de demolição de edifícios em zonas históricas ou inventariados não se trata de opinar se a nova obra será de valor arquitetónico significativo mas antes questionar a perda de um bem cultural de grande valor e da perda de uma memória colectiva para a sociedade. A demolição deverá ser prevista apenas em casos extremos, por exemplo, a existência de uma estrutura comprometida e risco de desmoronamento. Na grande maioria dos casos, uma renovação ou restauro, mantendo-se as características originais do projeto, ou até mesmo uma reabilitação para um novo uso, pode impedir a demolição e evitar o abandono destes edifícios. Para além de leis e regulamentos, torna-se cada vez mais importante as iniciativas do poder local no que diz respeito à educação patrimonial e os incentivos fiscais aos proprietários de imóveis inventariados e aos em risco de ruína ou já em ruína.
O muito que perdemos quando mutilamos, demolimos ou descaracterizamos o nosso património
Perdemos muito cada vez que o nosso património é demolido, descaracterizado ou mutilado. Ao permitirmos a destruição do nosso património estamos não apenas perdendo qualidade de vida, mas também perdendo cidadania e do senso de pertença aos locais e aos grupos comunitários. O património histórico, visto como um conjunto de bens e valores que representam uma nação, deve ser entendido como a herança de um povo, na busca de uma valorização do passado e uma melhor compreensão do presente. O ser humano sempre necessitou do passado, seja nas lembranças de fotografias, nas ruas de uma cidade, nas lembranças de uma residência, de uma praça, de um café de bairro, de um teatro, de um cinema. Essas lembranças têm o poder de nos reconfortar e trazem sinais de proximidade, de um passado artístico. Os monumentos históricos funcionam como ícones desse passado atemporal, são a criação artística de tempos idos e a simbólica no presente. E a nossa memória, constituída de impressões e de experiências, é o que nós retemos e que nos dá a dimensão do que percebemos e sentimos através do nosso lugar no mundo.
A arquitetura e os lugares da cidade constituem o cenário onde as nossas lembranças se situam e, na medida em que essa arquitetura e esse lugar fazem alusão a significados simbólicos, evocam narrativas relacionadas com a nossa vida. A memória colectiva das cidades está nos seus edifícios antigos. Eles são o testemunho mudo, porém valioso, de um passado distante e servem não só para transmitir às gerações posteriores os episódios históricos que neles tiveram lugar mas também como referência urbana e arquitectónica para o nosso momento actual. Preservá-los não só para os turistas tirarem fotos ou para mostrar aos nossos filhos e netos, mas para que as gerações futuras possam sentir in loco a visão de uma cidade humana e como se viveu/vive nela.
Uma cidade sem os seus velhos edifícios é como um homem sem memória.
(Artigo publicado na edição papel do Caderno Cultura.Sul de Novembro)