Um quilo e meio de esperança em 41 centímetros de gente. Marysol nasceu para desafiar a Medicina, num ano de luto e de ausências, a bebé improvável já deixou a sua marca na investigação científica sobre o comportamento do novo coronavírus. Atravessou o oceano na barriga da mãe, foi gerada no recolhimento da pandemia em Lisboa, nasceu sem ar, sofreu como um adulto e demorou um mês e meio até conseguir respirar sozinha. “Uma coisinha assim começando a viver”, como cantou já há muito tempo o poeta do amor brasileiro para outra menininha. Marysol ainda não conhece Vinícius de Moraes, mas já sabe o que é ter de lutar para cá ficar.
Grazielle chegou a Portugal no fim de janeiro e já vinha grávida. Depois de um primeiro casamento e de quatro abortos naturais, aos 41 anos descobriu que tinha em si uma semente cheia de promessa. Rejubilou. “Sempre quis ser mãe, sou louca por crianças, tenho muitos sobrinhos e afilhados. Recorri a vários tratamentos, mas já não acreditava que fosse possível. Fiz um teste de gravidez e apareceram dois pauzinhos, repeti e apareceram outra vez dois pauzinhos. Estava grávida.” Mesmo assim, não desistiu de partir para Portugal, deixando a Friburgo natal, cidade serrana a cerca de duas horas do Rio de Janeiro e com quase 200 mil habitantes, fria para os hábitos brasileiros e que vive sobretudo da indústria têxtil. E deixou a família, que a preferia ver no Brasil.
Em Lisboa, começou a trabalhar, mas a gravidez era a prioridade até que, de repente, a pandemia caiu-lhe em cima. Fechou-se em casa — “quietinha” — para proteger a criança. Aos seis meses, o primeiro sobressalto, quando foi necessário colocar um anel no útero para suster a gravidez e Grazielle acabou por ter de ficar internada durante 20 dias no Hospital Amadora-Sintra, caso contrário, a bebé poderia ter nascido de 27 semanas. Susto atrás de susto, suportou a falta de visitas, o receio e dedicou-se a ser gestante. “Chorei muito, tinha medo de perder a criança”, desabafa agora, com a filha no colo.
RESISTÊNCIA Paula, enfermeira, não está preparada para outra luta contra o vírus tiago miranda
” src=”https://images.impresa.pt/expresso/2020-12-28-enfermeira-paula-loes_tiago-miranda_t-_idp.jpg/original/mw-320″>RESISTÊNCIA Paula, enfermeira, não está preparada para outra luta contra o vírus – FOTO TIAGO MIRANDA
Já houve outro caso de infeção congénita no Hospital de São Francisco Xavier, mas o bebé esteve sempre assintomático, portanto apresentou uma evolução clínica completamente diferente. Surgiram também notícias de mais um caso no norte do país, mas com o primeiro teste negativo. Em todo mundo, são ainda muito raros os exemplos de transmissão in utero. Até novembro, um artigo científico britânico na “Lancet” identificava apenas dois bebés com transmissão vertical no Reino Unido(3% dos casos analisados), com uma amostra positiva para SARS-CoV-2 obtida 12 horas após o nascimento. “Existem outros casos de infeção congénita descritos na literatura médica internacional, mas até à data não encontrámos nenhum de infeção congénita com um quadro respiratório tão grave”, revela Madalena Tuna. A experiência deu origem a um artigo científico publicado este mês numa revista internacional de referência na área da Infecciologia Pediátrica.
Passados seis meses, Marysol é uma criança alegre, divertida e risonha. “Mexe-se muito, só é mais pequena, mas é bastante agitada e muito inteligente e curiosa”, conta a mãe orgulhosa. As duas voltaram para o Brasil, vivem com a família de Grazielle em Friburgo, e o pai, que ficou em Lisboa, fala com a filha por videochamada. “A Marysol é o meu milagre”, não se cansa de repetir Grazielle, com a certeza de quem atravessou uma dura tempestade.
CURADA PARA CURAR
Esperança é o sentimento de quem vê como possível a realização de um desejo. Um ato de fé. Na mitologia grega, não era assim, era o último dos males que ficou na caixa de Pandora. Virtude ou defeito, diz-se que é a última a morrer, mas mesmo a esperança terá um fim, vai se finar. Entretanto, empurra quem espera. Impulsiona. Dá luta à adversidade.
A meio de novembro havia 8755 profissionais de saúde infetados em Portugal, foi a última vez que se fez um balanço deste tipo. Assim como são poucas as vezes em que se recorda que um médico morreu ao contrair covid-19 em serviço. São os profissionais que dão a cara e o corpo ao vírus para tirá-lo de outros. Uma destes profissionais, Paula Lopes, 56 anos e há 33 enfermeira no Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa, foi uma das primeiras a cair com o SARS-CoV-2. Deu entrada no Hospital Curry Cabral a 15 de março, dois dias antes tinha sido a vez do marido. Insuficiente renal, dependente de diálise, é uma doente de risco e confirmaram-se as piores expectativas: esteve internada 68 dias, 40 dos quais em cuidados intensivos e, destes, 38 com necessidade de recorrer à ventilação mecânica. Durante algum tempo, marido e mulher estiveram internados lado a lado, mas o agravamento do estado clínico de Paula levou a que fossem separados, para preservar a tranquilidade de João — “Eu piorei justamente quando ele melhorou e foi extubado. Fizeram bem em nos separar porque parece que o meu não era um quadro nada bonito de se ver.”
Para a salvar, a equipa virou-a do avesso — “fiz todos os decúbitos possíveis” —, colocando-a em várias posições de forma a tentar facilitar a respiração. De tal forma que, passados mais de nove meses, Paula tem de fazer fisioterapia para tentar reverter a limitação de movimentos que ainda lhe tolhe o braço esquerdo. Mas tudo o que sente é posterior ao internamento porque, conta, enquanto esteve nos cuidados intensivos, não era a dor que a assustava. “Não tive sofrimento físico algum, não me recordo de sentir dor.” O que realmente a incomoda e que, embora agora consiga dormir bem, ainda volta de quando em vez, à noite, são os sonhos maus, delírios característicos de quem fica por períodos prolongados em unidades de cuidados intensivos. “Vi seres que não conheço, caixas com coisas lá dentro que preferia não ver e de que me queria afastar, seres que me agarravam”, partilha com algum desconforto evidente. Diz ainda que o que mais incomodava nestas alucinações era a realidade crua com que se apresentavam: “É assustador, não sabia se tinha vivido aquilo ou sonhado.”
Angústia O primeiro mês e meio da vida de Marysol foi difícil para a família e para a equipa médica do Hospital de São Francisco Xavier. A primeira criança em Portugal a nascer infetada pelo novo coronavírus precisou de ser ventilada e de recorrer a uma terapêutica experimental para a covid-19. Somente ao 63º dia a bebé recebeu um teste negativo para a presença do SARS-CoV-2, mas continuará a ser um caso raro e digno de estudo fotografias Arquivo da família” src=”https://images.impresa.pt/expresso/2020-12-28-d2d09fb1-dd92-405a-95bd-af29c8e77088_T-_IDP.jpg/2×3/mw-1240″>
ANGÚSTIA O primeiro mês e meio da vida de Marysol foi difícil para a família e para a equipa médica do Hospital de São Francisco Xavier. A primeira criança em Portugal a nascer infetada pelo novo coronavírus precisou de ser ventilada e de recorrer a uma terapêutica experimental para a covid-19. Somente ao 63º dia a bebé recebeu um teste negativo para a presença do SARS-CoV-2, mas continuará a ser um caso raro e digno de estudo – FOTOGRAFIAS ARQUIVO DA FAMÍLIA
Não é certo que os dedos das mãos cheguem para contar os centenários sobreviventes da covid-19 no mundo, mas não faltarão certezas em vê-los a todos como verdadeiras exceções à regra. Se há dado adquirido da experiência ainda ténue sobre a pandemia, é que os mais velhos estão mais suscetíveis a ter doença grave. O Centro para o Controlo e Prevenção da Doença americano diz mesmo que pessoas com mais de 85 anos têm 630 vezes mais probabilidade de morrer com o novo coronavírus do que um jovem entre os 18 e os 29 anos. Mas a existência de relatos de centenários a sobreviverem ao SARS CoV-2, e alguns, como Luciano, sem quaisquer sequelas, levou cientistas a investigarem e a determinarem que muito provavelmente a resposta está nos genes. Mayana Zatz, que lidera o Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco, em São Paulo, admite mesmo num artigo internacional que a razão pela qual sobreviveram é “provavelmente a mesma pela qual são centenários” e que tudo se deve “a uma combinação de genes”, estudada agora pela investigadora com amostras de genoma de alguns sobreviventes acima dos 95 anos.
Luciano não sabe se Deus tem alguma mão no seu caso. Crente e ligado desde sempre à paróquia, é para si “um mistério e cada um encara-o à sua maneira”. Ironiza, porém, que sempre desconfiou de um choque elétrico sofrido quando estava na casa dos 60 anos. “Dei um berro, o corpo começou a tremer. Tive noção de que naquela altura ia, mas não fui”, recorda. Ainda hoje pensa se não terá toda aquela corrente elétrica “queimado o que havia de ruim”. Mesmo assim, se no próximo ano for chamado para levar a vacina, não vai negá-la. “Decerto nunca houve um pandemónio destes, mas agora temos de ver o resultado das vacinas, saber se as pessoas estão entusiasmadas a tomá-las.” A esperança junta-se à lucidez explícita ainda que com as palavras embrulhadas na boca, volta e meia ágeis, volta e meia cansadas. Luciano deixou há muito de prometer tempo, mas sabe que enquanto cá andar o encontrarão no raio de 30 quilómetros onde não lhe falta nada — “o barbeiro, a igreja, a farmácia, o cemitério”.
Dentro dele, continuará a pegar no carro preto e a andar “com vagar” encostado à berma da estrada. Porque é preciso não dar razões à morte para ter pressa. E como Marysol e Paula também tiveram oportunidade de aprender, o vírus que parou o mundo pode ser derrotado, mas faz mossa e deixa marcas fundas. Mas há sempre quem lhe faça frente.