São bairros geométricos de cubos brancos de cal, diz Manuel da Fonseca. Ou de sal, do seu mar e da sua Ria. E de um prédio para o outro – escreveu Aquilino Ribeiro – as açoteias e fachadas acavalam-se, soprepõem-se, anuladas pela brancura.
São milhares de cubos em equilíbrio instável. Uma espécie de ‘puzzle’ num quadro urbano disposto ao sol. Porque é em dias de sol que Olhão deve ser vista do alto da torre sineira da sua igreja Matriz.
Lá de cima, – avistando-se as ilhas da Culatra, do Farol e da Armona – perde- se o olhar na cidade que é cristã e mourisca, cheirando o branco da cal e da maresia. Um quadro roubado a uma tela de Picasso ou de Vieira da Silva, conforme a luz da alma e a cor dos olhos do poeta ou pintor.
Olhão é, provavelmente, uma construção de inspiração islâmica com açoteias onde se secavam o peixe e os produtos que a terra dava, porque cada olhanense era nesses tempos pescador e agricultor ao mesmo tempo.
Por essa altura, quando a aldeia pouco mais era do que um sítio de casas feitas de canas e junco que Faro lhes permitia ser, as mulheres de Olhão foram buscar – certamente também da áfrica islâmica – um costume de indumentária que Raul Brandão em 1922 descrevia assim:
“Ainda há bem pouco tempo, todas as mulheres de Olhão usavam cloques e biocos. O capote, atirado com elegância sobre a cabeça, tornava-as impenetráveis.
É um trajo misterioso e atraente. Passam, olham-nos e não as vemos. Mas o lume do olhar, mais vivo no rebuço, tem outro realce. Desaparecem e deixam- nos cismáticos”.
– De quem são aqueles olhos que ferem lume? – interroga-se Brandão, vendo- -as passar!
E lá iam elas… cloque, cloque, cloque… qual fantasmas, no seu passo curtinho e batido, velozes nos sapatinhos de ourelos. Escondidas no seu capote da cobiça alheia, pois que os seus maridos andavam embarcados semanas a fio pelos mares de Larache e da Mauritânia!
E por fim, iluminado por essa luz de mistério escondida por detrás desse manto de mulher, Raúl Brandão, olhando uma última vez a brancura imaculada das açoteias, suspirava nostálgico:
“Se pudesse, teria aqui uma casa numa das vielas mais escusas. E teria duas escravas para me servirem… e de noite, a este luar que tem não sei o quê de mulher, de pele de mulher, de seios duros e brancos de mulher, dormiria na soteia sob as estrelas”.
E entre os papéis de memórias, levaria consigo o poema de sal e sol que Leonel Neves haveria de escrever anos mais tarde:
“Eh! Menina do quiosque…
dê-me aí uma lembrança
que eu vou a sair de Olhão!
Não quero cestos de empreita
nem sardinhas enlatadas
nem, cinzeiros-chaminés.
Postais ilustrados, não!
Dê-me depressa
Um cubo de cal
Um punhado de sal
e aquela espada de luz”!
Fontes: “Os Pescadores”, Raúl Brandão; “Crónicas algarvias”, Manuel da Fonseca; “Natural do Algarve”, Leonel Neves; “Guia de Portugal”, Aquilino Ribeiro; outras
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