O vídeo começou a circular nas redes sociais na quinta-feira — e rapidamente se tornou viral. Uma embarcação de madeira, com dezenas de migrantes a bordo, foge de um barco maior, parte da frota da Guarda Costeira da Líbia, que dispara pelo menos duas vezes para perto dos migrantes, atira vários objetos contra o barco e por várias vezes lhe passa tangentes.
O vídeo foi gravado a partir do ar, pela tripulação do avião de vigilância do Mediterrâneo “Seabird”, da organização não-governamental alemã Sea Watch, que tenta identificar barcos que possam estar em apuros e depois contactar as autoridades mais próximas, ou quaisquer navios que estejam perto, para ajudar as pessoas. Na altura do incidente, tanto o barco líbio como o dos migrantes estavam em águas internacionais, mas dentro da zona de salvamento atribuída às autoridades de Malta.
No vídeo é possível ouvir a tripulação a pedir às autoridades líbias que não disparem contra o barco e os líbios a responder que estão a tentar salvar as pessoas. O alto-comissário para os refugiados da ONU, Filippo Grandi, já respondeu a este episódio: “Extremamente grave se se confirmar”, disse à France 24. O Expresso pediu à Comissão uma reação e dela dará conta assim que chegar.
O barco da Guarda Costeira da Líbia que se vê no vídeo, o “Ras Jadir”, é um dos quatro doados por Itália em maio de 2017, parte de um acordo abrangente entre a União Europeia (UE) e a Líbia e que, segundo a UE, visa melhorar as condições de vida naquele país africano e reduzir os fluxos migratórios para a UE. No total são 12 os barcos oferecidos por Itália, um acordo de ajuda que o Governo italiano renovou por mais três anos em 2020.
O problema, e é esta a base das queixas dos membros de várias ONG, é que a Guarda Costeira Líbia, que resgata muitas vezes migrantes em apuros, leva essas pessoas de volta aos centros de detenção para migrantes que proliferam no país, centros esses onde as condições de vida não são consideradas como minimamente aceitáveis. Quem o diz é o Tribunal Europeu de Justiça, que não considera a Líbia um porto seguro e por isso é contra a lei internacional devolver quem quer que seja a esse país.
“Durante a nossa missão com o avião de reconhecimento ‘Sea-Watch Seabird’ a 30 de junho, pelas 13h39, ouvimos uma comunicação sobre a posição de um barco que transportava 65 pessoas, muitas crianças, dentro da zona de busca e resgate de Malta. Quem dispara sobre refugiados e tenta abalroar os seus barcos não está ali para salvá-los. A UE deve pôr termo imediatamente à cooperação com a ‘guarda costeira’ líbia. Estados europeus como Malta devem assumir a responsabilidade pelas suas zonas de resgate e cumprir o seu dever”, disse a Sea Watch em comunicado.
Sacos contendo corpos dos migrantes afogados ao largo da cidade costeira de Komas, Líbia – Foto Ayman Al-Sahili / Reuters – D.R
Em declarações à Euronews em fevereiro, o chefe da Marinha encarregado da operação da UE de policiamento das águas disse que a União Europeia deveria dar à Líbia mais autonomia para lidar com a imigração ilegal e que a melhor maneira de impedir os migrantes de tentarem esta perigosa travessia até à Europa era ajudar a preparar a guarda costeira líbia para combater o contrabando de pessoas. “Acredito que a melhor forma de acabar com a imigração ilegal, de contribuir para o desmantelamento desses modelos de contrabando de pessoas, é treinar a guarda costeira líbia, a Marinha, porque precisamos de lhes dar mais autonomia para lidar com as questões de segurança que acontecem em águas que são da sua da responsabilidade”, disse Fabio Agostini, chefe da missão Irini de patrulha de fronteiras marítimas, que não visa o salvamento de pessoas e é uma visão muito longínqua de uma outra missão, a Mare Nostrum, nascida precisamente para salvar pessoas.
Uma investigação da Associated Press descobriu que no final de 2019 a UE tinha enviado mais de €327,9 milhões para a Líbia, o que é mais de três vezes o custo da Mare Nostrum. Os 101,4 milhões de euros-extra que a UE adjudicou à Frontex em 2020 são aproximadamente o mesmo que Itália pagou sozinha pela operação Mare Nostrum durante o ano de 2014 (€9 milhões por mês). Por que razão a UE escolheu enviar tantos fundos para um Estado que a própria UE considera corrupto em vez de investir numa operação de resgate semelhante ao Mare Nostrum? O Expresso já fez esta pergunta à Comissão Europeia várias vezes, já que o tema dos reenvios para a Líbia é comum e suscita quase sempre as mesmas perguntas.
Foto Mahmud Turkia/Afp/Getty Images D.R.
A Comissão Europeia não respondeu diretamente à pergunta mas reforçou que “atualmente existem programas ao abrigo do Fundo Fiduciário de Emergência da UE para o Norte de África no valor de €408 milhões que apoiam principalmente a proteção dos grupos mais vulneráveis, como migrantes e refugiados, e a estabilização das comunidades”. Já para a “gestão de fronteiras”, continua a resposta da CE, “a UE comprometeu-se em apoiar o Ministério do Interior de Itália com €42,5 milhões, que por sua vez visam reforçar a gestão integrada das fronteiras e da migração na Líbia”. O principal beneficiário destes programas é a Administração Geral de Segurança Costeira da Líbia (GACS), que está subordinada ao Ministério do Interior da Líbia e cuja área de operações se limita à linha costeira e às águas territoriais da Líbia (zona de 12 milhas náuticas). “O objetivo deste programa é salvar a vida de quem faz viagens perigosas por mar ou terra, não é intercetar e proibir a progressão dos barcos. A GACS já recebeu vários treinos em assistência técnica de busca e salvamento, inclusive em direitos humanos.”
O episódio desta semana tem merecido especial atenção porque de facto há um vídeo onde é inegável o disparo contra as pessoas, e isso não vê todos os dias. Mais comum é a denúncia dos reenvios ilegais como prática tão comum que vários advogados e até a ONU já classificam como “parte da política para as migrações” de países como Grécia, Itália, Malta ou Croácia, para citar apenas aqueles referidos com mais frequências nos relatórios escritos sobre o tema.
O barco de 65 migrantes alvo dos disparos conseguiu evitar a interceptação e chegou à ilha de Lampedusa dia 1 de julho, na mesma manhã em que outro barco virou já perto da costa da Sicília, deixando sete mulheres mortas e nove pessoas desaparecidas.
Quase 700 pessoas morreram nos primeiros seis meses deste ano enquanto tentavam cruzar o Mediterrâneo Central, de acordo com o Projeto Migrantes Desaparecidos da Organização Internacional das Migrações (OIM). Ao mesmo tempo, mais de 19.000 pessoas chegaram a Itália, três vezes mais do que no mesmo período do ano passado, de acordo com o Ministério do Interior da Itália.
As autoridades líbias, coordenadas por oficiais malteses e italianos e com o apoio de navios comerciais e embarcações privadas, interceptaram e devolveram à Líbia mais de 13.000 pessoas durante os primeiros seis meses de 2021 — mais do que os 11.891 interceptados ao longo de todo o ano de 2020, isto de acordo com as contas do International Rescue Committee, a ONG com sede em Nova Iorque que mapeia as principais catástrofes humanitárias no mundo.
Autoridades francesas resgatam 47 migrantes
As autoridades francesas anunciaram este sábado ter socorrido, nas proximidades da localidade de Pas-de-Calais (norte) 47 migrantes que tentavam atravessar o Canal da Mancha rumo ao Reino Unido, em embarcações improvisadas.
Na sexta-feira mais de uma centena de migrantes tinham já sido socorridos ao tentar uma travessia similar, uma vez que o aumento das temperaturas, com a chegada do verão, favorece este tipo de partidas.
Esta manhã, o centro regional operacional de vigilância e socorro de Griz-Nez foi contactado por migrantes em dificuldades no largo de Sangatte, próximo de Calais. Cinco náufragos, entre os quais uma mulher grávida, foram socorridos, tendo acabado por desembarcar no porto de Boulogne-sur-Mer.
Posteriormente, uma outra embarcação, com 22 elementos a bordo, sinalizou uma avaria no motor, sendo recolhida no porto de Dunquerque.
O centro regional operacional de vigilância e socorro de Griz-Nez viria a ser novamente contactado por uma terceira embarcação, com 20 pessoas, pelo mesmo motivo. Coube ao porto de Boulogne-sur-Mer fazer o acolhimento. Sãos e salvos, ficaram sobre alçada dos bombeiros e do serviço de estrangeiros e fronteiras de França.
Desde finais de 2018 que estas travessias ilegais de migrantes no Canal da Mancha, procurando chegar ao Reino Unido, se têm multiplicado, apesar dos repetidos avisos das autoridades que alertam para o perigo da densidade de tráfego, às fortes correntes e à baixa temperatura da água.
Em 2020, mais de 9.500 travessias, ou tentativas, foram registadas, ou seja quatro vezes mais que em 2019, segundo dados das autoridades marítimas. Seis pessoas morreram e três foram dadas como desaparecidas, depois dos quatro falecimentos em 2019.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso