No actual contexto pandémico, em que é crítica a adopção de medidas profilácticas em comunidade, a correcta interpretação das inúmeras notícias, que diariamente populam os meios de comunicação social, tem um inegável impacto na adesão a essas mesmas medidas. Um exemplo recente prende-se com o caso dos “falsos positivos” dos testes ao SARS-CoV que, numa leitura desatenta e superficial, pode minar a confiança da opinião pública aos testes e, consequentemente, às medidas adoptadas no combate à pandemia. Mas o que significa exactamente um “falso positivo” e que relevância têm esses casos?
Quando é feito um qualquer teste, como é o caso do teste PCR (Polymerase Chain Reaction), vulgo “teste da zaragatoa”, há quatro cenários possíveis, resultantes do cruzamento entre dois possíveis estados acerca da pessoa (infectada ou não com o SARS-CoV) e dois possíveis resultados para o teste (positivo ou negativo): (1) a pessoa testada está efectivamente infectada com o vírus e o resultado do teste é, correctamente, positivo (um verdadeiro positivo); (2) a pessoa testada está efectivamente infectada com o vírus mas o resultado do teste é, erroneamente, negativo (um falso negativo); (3) a pessoa não está infectada com o vírus e o resultado do teste é, correctamente, negativo (um verdadeiro negativo); (4) a pessoa não está infectada mas o resultados do teste é, erroneamente, positivo (um falso positivo). Note-se que, de entre os quatro possíveis cenários, em dois deles o teste fornece um resultado correcto e, nos outros dois, um resultado erróneo: estes últimos, obviamente indesejáveis, são infelizmente impossíveis de eliminar completamente (por exemplo, o material genético sob o qual o teste se baseia existe em concentrações que variam individualmente, a zaragatoa é incorrectamente aplicada, entre outros possíveis factores).
Obviamente, quando é feito um teste, não se conhece de antemão se a pessoa está ou não infectada (caso contrário, o teste seria desnecessário) e, por conseguinte, é impossível determinar, perante um qualquer resultado, se estamos a lidar com um cenário cujo resultado é correcto ou errado. Podemos, contudo, quantificar a nossa convicção acerca do quanto o resultado do teste reflecte o verdadeiro estado da pessoa, sob a forma de probabilidades. Com base em estudos prévios, é possível quantificar as probabilidades de um verdadeiro positivo – a “sensibilidade” do teste – e de um verdadeiro negativo – a “especificidade” do teste. A sensibilidade indica-nos, de entre aqueles casos em que a pessoa está efectivamente infectada, a percentagem de casos em que o resultado do teste é, correctamente, positivo: para o teste PCR este valor é de, pelo menos, 95% (de onde resulta que 5% será a taxa de falsos negativos – isto é, em 5% dos casos em que uma pessoa está infectada, o teste dá um resultado negativo). A especificidade indica a probabilidade de o resultado do teste ser negativo quando a pessoa não está infectada – no caso do teste PCR a especificidade é, igualmente, de pelo menos 95% (ou seja, 5% dos casos serão falsos positivos). Ainda que não existam testes perfeitos, há testes melhores que outros – um “bom” teste terá não só uma sensibilidade alta mas também uma especificidade alta: ou seja, não basta que o teste seja bom a detectar correctamente a presença do vírus, deve também identificar, tão correctamente quanto possível, a sua ausência. Para esclarecer este ponto, imagine um teste cujo resultado é sempre, sem excepção, “positivo”: seria matematicamente garantido que a sensibilidade deste teste fosse 100%, pois a totalidade das pessoas infectadas com SARS-CoV seria correctamente identificada como tal; porém, em 100% dos casos em que a pessoa não estivesse infectada, o resultado do teste seria, erroneamente, positivo – dito de outra forma, teríamos uma taxa de 100% de falsos positivos e, por conseguinte, uma especificidade de 0%. De igual forma, um teste cujo resultado fosse sempre, sem excepção, “negativo”, teria uma especificidade de 100% (a totalidade das pessoas não infectadas seria correctamente classificada como tal), mas uma sensibilidade de 0% (pois a totalidade das pessoas infectadas seria erroneamente classificada como não infectada – 100% de falsos negativos). Obviamente, o leitor não confiaria no resultado de nenhum destes testes hipotéticos – um teste será tão mais confiável quanto maior for a sua sensibilidade e especificidade, pese embora seja impossível garantir para ambos uma taxa de 100%. E aqui reside parte do problema: nós, seres humanos, tendemos a sobrevalorizar certezas e nem sempre interpretamos correctamente informação probabilística, o que pode ser especialmente crítico quando essas informam decisões que, por sua vez, acarretam consequências. No que se segue, procuramos responder, de uma forma necessariamente breve, a duas questões: Se existem falsos positivos nos testes ao SARS-CoV, então qual é a probabilidade de uma pessoa estar infectada se o resultado do teste for positivo? Se um resultado num teste não nos fornece uma certeza absoluta, então com que seriedade devemos tomar um resultado positivo?
Sensibilidade, Falsos Positivos e o Teorema de Bayes
Quando um teste PCR é efectuado e um resultado obtido, ainda que exista sim uma certa probabilidade de esse ser erróneo (um falso positivo ou um falso negativo), obtemos informação nova, que não tínhamos previamente – obviamente, a qualidade da informação obtida é tão boa quanto a fidelidade do teste, e daí que seja tão relevante conhecer a sua sensibilidade e a especificidade. Por outro lado, antes da realização de um teste, não somos necessária e totalmente ignorantes: é possível quantificar a nossa convicção à partida acerca da presença/ausência de uma infecção, uma vez mais sob a forma de uma probabilidade. Suponha o leitor que duas pessoas que conhece foram sujeitas ao teste PCR e, para ambas, o teste deu positivo: contudo, enquanto que uma delas sistematicamente falhou em aderir a cuidados básicos, como o distanciamento social e uso de máscara, frequentou várias festas e contactou com pessoas com Covid, a outra manteve um estrito regime de confinamento e distanciamento social. A sua convicção de que um resultado positivo representa um verdadeiro positivo (isto é, a pessoa está efectivamente infectada) será certamente maior para a primeira pessoa. Dito de outra forma, a probabilidade de uma pessoa em específico estar infectada com SARS-CoV, dado um resultado positivo no teste PCR, depende do quão fiável é o teste (a sua sensibilidade e especificidade) mas também da probabilidade à partida de uma infecção.
Qual é, então, a probabilidade de uma pessoa estar efectivamente infectada tendo em conta um resultado positivo no teste [P(Cov|PCR+)]? A resposta a esta questão pode ser obtida com o chamado Teorema de Bayes: esta fórmula permite combinar a informação obtida com um resultado positivo (dado um teste com uma certa sensibilidade e especificidade) com a convicção prévia acerca do quão provável é a pessoa estar infectada [antes de se conhecer o resultado do teste – P(Cov)]:
Para concretizar, vamos assumir que o teste PCR tem uma sensibilidade de 98% (e, logo, uma taxa de falsos negativos de 2%) e uma especificidade de 95% (e, portanto, uma taxa de falsos positivos de 5%). Para a probabilidade à partida de uma infecção, vamos assumir que a pessoa testada foi escolhida aleatoriamente de uma população na qual a prevalência do vírus se situa nos 3%:
O leitor poderá ficar surpreendido com este resultado – não obstante um teste consideravelmente fiável (uma sensibilidade de 98% e uma especificidade de 95%), a probabilidade desta pessoa em particular estar infectada é de “apenas” 37%. Contudo, note que antes de obtermos a informação do teste, a probabilidade desta pessoa estar infectada era já consideravelmente baixa – apenas 3%: ou seja, é relativamente mais provável que o resultado seja um falso positivo. Ainda assim, a nossa convicção de uma infecção aumentou de 3% para 37%, o que representa um considerável ganho de informação. Importa clarificar que esta probabilidade expressa tão somente a convicção acerca do estado de saúde da pessoa: não é um valor imutável e pode ser melhorada com a obtenção de mais informação. Suponha que decidimos testar novamente a mesma pessoa e, uma vez mais, o resultado foi positivo – a probabilidade “à partida” dessa estar infectada já não é 3%, mas sim 37% (após o primeiro teste):
O resultado reflecte aquilo que intuitivamente esperaríamos – dois testes positivos aumentam a nossa convicção de que este é um verdadeiro positivo. Mais que isso, a nossa convicção acerca da probabilidade de uma infecção por SARS-CoV aumentou quando o valor da probabilidade à partida era maior. De forma similar, um resultado positivo numa pessoa que tenha tido contactos de risco e falhado em aderir a recomendações e/ou que apresente sintomas terá uma maior probabilidade de ser um verdadeiro positivo pelo simples facto de que a probabilidade à partida de uma infecção ser também maior. A relevância deste ponto fornece uma nova perspectiva sobre a questão dos “falsos positivos”: quando mais eficazes forem as medidas de controlo da pandemia e adesão às mesmas, menor é a probabilidade de uma qualquer pessoa estar infectada e, por conseguinte, maior a probabilidade de um resultado positivo ser “apenas” um falso positivo. Dito de outra forma, uma taxa relativamente alta de falsos positivos não deve ser tomada levianamente como evidência para desconfiar do próprio teste – na verdade, conhecerem-se mais falsos positivos pode ser tão somente uma consequência da eficácia das medidas adoptadas para controlo da pandemia.
Falsos Positivos, Falsos Negativos e a ponderação de custos e ganhos
Como discutimos na secção anterior, o resultado de um teste não nos informa de forma absolutamente inequívoca acerca da presença de SARS-CoV: conhecemos o resultado do teste (positivo ou negativo) e, quanto muito (na medida em que consigamos aferir correctamente uma probabilidade prévia), uma convicção probabilística de que, dado um teste positivo, estamos perante um verdadeiro positivo. Obviamente, a relevância dessa informação não se esgota em si mesma, antes informando e suportando um ou outro curso de acção – com que seriedade se deverá tomar um resultado positivo (já que pode ser um falso positivo)? Justificar-se-á um período de quarentena e limitação de contactos sociais? Ora, de forma relevante, uma escolha sensível de um curso de acção não poderá somente depender das probabilidades acerca de certos estados do mundo, mas deverá igualmente considerar as consequências associadas a diferentes possíveis cenários. Com efeito, cada um dos quatro cenários possíveis quando se aplica um teste – verdadeiros positivos, verdadeiros negativos, falsos positivos e falsos negativos – acarreta consequências específicas, tanto individuais como sociais. No caso da actual pandemia, um verdeiro positivo representa ganhos consideráveis: um caso activo é correctamente detectado, a pessoa em causa pode ser isolada, prevenindo assim a propagação da doença, e sujeita a um tratamento adequado, caso seja necessário (eventualmente salvando uma vida). Já um verdadeiro negativo acarreta vantagens para a pessoa envolvida, pois não vê a sua vida afectada e poderá ficar descansada por não ter contraído Covid. Por outro lado, um falso positivo significa que a pessoa envolvida será isolada, o que poderá representar um incómodo desnecessário, ainda que não particularmente gravoso. Finalmente, um falso negativo acarreta custos consideráveis, pois uma pessoa infectada com SARS-CoV que não seja correctamente identificada poderá manter as suas rotinas, contactar com outros e, eventualmente, propagar desnecessariamente a infecção.
Quantificando os custos e os ganhos associados a cada possível cenário, é possível determinar como deverá ser ponderada a evidência disponível para informar uma postura mais radical – tomar seriamente a mínima evidência de que se trata de um verdadeiro positivo (valores de βOinferiores a 1) – ou mais conservadora – tomar com muita cautela evidência de que se está perante um verdadeiro positivo, a menos que se tenha um grau razoável de confiança (valores de βOsuperiores a 1) –, e agir em concordância (a fórmula seguinte é baseada nalguns aspectos normativos, fundados na Teoria da Escolha Racional, da Teoria de Detecção de Sinal):
É sempre difícil tentar quantificar numericamente custos e ganhos de eventos que envolvam a vida e o bem-estar das pessoas – contudo, pode frequentemente ser um exercício necessário. O leitor deverá tomar o que se segue não como uma solução prescritiva, mas sim como um exercício de reflexão, e poderá ensaiar soluções distintas da que é aqui apresentada. Imaginemos uma pessoa que, perante um resultado positivo no PCR, e conhecendo o Teorema de Bayes, repete os cálculos que fizemos na secção anterior, e determina ter uma probabilidade de 37% de estar efectivamente infectada. Contudo, antes de concluir apenas que “é muito pouco provável eu estar contaminada”, reflecte sobre os custos e ganhos de cada possível cenário: se estiver realmente infectada (verdadeiro positivo), poderá isolar-se, tomar as medidas necessárias e proteger-se a si e aos outros, o que estima ter um valor de 100 pontos; já um verdadeiro negativo tem pouco impacto na sua vida, para além de algum alívio de não estar infectada, o que estima valer 5 pontos; um falso positivo significaria que exercitaria um confinamento desnecessário, o que representa algum desconforto pessoal, com um custo estimado de -10 pontos; finalmente, um falso negativo significaria que não obstante estar infectada, levaria a sua vida rotineira sem alterações, potencialmente infectando outras pessoas, o que estima ter um custo considerável de -150 pontos. Aplicando a fórmula anterior temos que:
Note-se que, não obstante a relativamente baixa probabilidade desta pessoa estar infectada, os custos associados a um falso negativo e os ganhos associados a um verdadeiro positivo, compensam largamente aqueles associados a um falso positivo e um verdadeiro negativo. O resultado, bastante inferior a 1 traduz a conclusão, de si óbvia, que neste caso é preferível “jogar pelo seguro” e tomar seriamente um resultado positivo no teste, mesmo que seja somente um “mero” falso positivo.
Nuno de Sá Teixeira
(Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva)
Nuno Alexandre de Sá Teixeira
Nuno Alexandre de Sá Teixeira formou-se em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, e doutorou-se em Psicologia Experimental pela mesma instituição. Trabalhou como investigador doutorado no Departamento de Psicologia Experimental Geral da Universidade Johannes-Gutenberg, Mainz, Alemanha, no Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra e no Centro de Biomedicina Espacial da Universidade de Roma ‘Tor Vergata’, Itália. É actualmente Professor Auxiliar Convidado no Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro.
Os seus trabalhos científicos têm-se centrado no estudo da forma como variáveis físicas (em particular, a gravidade) são instanciadas pelo cérebro, como “modelos internos”, para suportar funções perceptivas e motoras na interacção com o mundo. Assim, os seus interesses partem da charneira entre áreas temáticas como a Psicologia da Percepção, Psicofísica e Neurociências.