Nos tempos em que o mar era um segredo, o mundo acabava ali. Além dele era o desconhecido. Quem ousasse passar o Bojador era engolido e nunca mais voltava. A terra enfiava por baixo da linha do equador e desaparecia. As águas eram ferventes e povoadas de monstros marinhos.
À parte o exagero das lendas do mar tenebroso, a verdade é que com o conhecimento, os meios e os instrumentos disponíveis, a tarefa não era assim tão fácil como hoje pode parecer. E existiam razões da geografia, do regime dos ventos e da configuração da costa daquela zona da África Ocidental que explicavam os receios e as dificuldades. E os árabes, temendo uma invasão europeia, ajudavam à festa carregando nas cores negras de uma aventura sem regresso.
O cabo era rodeado de recifes pontiagudos envoltos em denso nevoeiro e de bancos de areia que se estendiam por uma distância de cinco léguas da costa com apenas poucos metros de profundidade. Os que o haviam tentado ultrapassar, por ali ficaram encalhados e engolidos. E não havia notícia de quem tivesse de lá voltado. Os ventos fortes dominantes do quadrante norte abortavam qualquer tentativa de regresso. Era uma viagem sem retorno e condenada ao fracasso.
Para se compreender melhor as dificuldades que se colocavam aos marinheiros de então, basta atentar nesta descrição, que há alguns anos tive o privilégio de escutar da voz do mestre Arnaldo, 40 anos de mar e que conhece o Cabo Não e o Bojador como as palmas da sua mão:
“O monstro é o mar. Toda a costa é tormentosa feita de altos e fundões a esconderem os perigos dos recifes e línguas de areia até 25 quilómetros da costa, onde o mar tem apenas poucas braças de profundidade. Se aquilo para nós com os barcos e a maquinaria e instrumentos de navegação, ainda é difícil, imaginemos o que seria para eles. As correntes e os ventos são fortíssimos e eles tinham que navegar a remos junto à costa ou em zigue zague, a bolinar se o pudessem fazer no regresso. Para lá, iam com vento à popa e no regresso tinham de vir aproados. No inverno ainda vinham bem, mas se viessem no verão era muito mais difícil porque atravessavam a nortada toda. Se não tinham velas que pudessem bolinar seguiam à deriva até que o vento virasse. Gil Eanes foi para lá com vento pelas costas e no regresso apanhou a nortada. E com uma barca de um mastro e uma vela redonda, não era tarefa fácil de manobrar…”
Este relato do mestre Arnaldo, de experiência feito, corresponde, no essencial, ao que contava Zurara na sua Crónica da Guiné: “Diziam os mareantes que despois deste cabo, não há aí gente nem povoação alguma: a terra não é menos arenosa que os desertos da Líbia, onde não há água, nem árvore, nem herva verde; e o mar é tão baixo, que a uma légua de terra não há fundo mais do que uma braça. As correntes são tamanhas, que navio que lá passe, jamais nunca poderá tornar”.
Por isso mesmo, os aventureiros preferiam outras águas mais tranquilas e lucrativas. A grande maioria ficava-se pelas Canárias, mares de Granada e pelo litoral africano, nos limites então conhecidos e aconselhados, onde praticavam o corso e apresavam cativos que vendiam como escravos a preços que justificavam as despesas de viagem.
O Bojador parecia então aos olhos dos navegantes das barcas algarvias, um obstáculo intransponível.
Mas D. Henrique sabia que o mundo não acabava ali. Muito teimou convencê-los que aquilo não era bem como soava. E não deviam dar ouvidos às histórias pouco tranquilizadoras de marinheiros estrangeiros que nada sabiam daqueles mares desconhecidos.
Zurara, citando o Infante, acrescentava: “quando são tirados da carreira de Flandres, ou de alguns outros portos para que comummente navegam, não sabem mais ter agulha nem carta de marear”.
E de tanto insistir, acabou por levar Gil Eanes a encher-se de coragem e a fazer-se de novo ao mar, depois de uma primeira viagem fracassada, com promessas de generosas recompensas.
Finalmente, em maio de 1434, – após 15 tentativas em 12 anos, feitas por outros navegadores portugueses – Gil Eanes “aparelhou uma barca de 30 toneladas, com um só mastro, uma única vela redonda, parcialmente coberta e também movida a remos. A sua tripulação era de apenas quinze homens. Com ela, ao chegar às proximidades do Cabo do Medo, decidiu manobrar para oeste afastando-se da costa africana. Após um dia inteiro de navegação longe da costa, deparou com uma baía plácida de ventos amenos, e então dobrou para sudeste e logo percebeu que havia deixado o Cabo Bojador para atrás”.
E ao invés de monstros e outros medos, encontrou uma terra desolada e deserta. Sem vivalma!
E como não quis fazer o regresso de mãos vazias, sem uma prova que pudesse convencer os incrédulos de que lá tinha estado e voltado, colheu umas ervas silvestre que trouxe consigo para oferecer ao rei e ao infante.
Eram as rosas de Santa Maria. E assim se abriram as portas ao mistério*!
Fontes: “Crónica dos Feitos da Guiné”, Gomes Eanes de Zurara; “Obra Poética”, *João José Cochofel; “Navegantes, Viajantes e Aventureiros Portugueses”, Luis Albuquerque; outras