Na crónica anterior(1)fiz saber que decidira aceitar a sugestão do Mestre António Homem Cardoso de fazermos um périplo pelos Algarves – de costa a costa – utilizando exclusivamente o comboio! Parecia fácil, pois a via férrea estende-se de Vila Real de Santo António a Lagos. Este percurso, bem sei, não esgota o Algarve. Para além deste litoral há ainda muito desse Reino misterioso para descobrir. Se bem que não esgote o Algarve este percurso é um começo seguro e também, seguindo-o, ninguém poderá acusar-nos de parcialidade. Deste modo, na preparação desta “longa” travessia, analisei as 30 estações servidas pela linha do Algarve e pareceu-me que poderiam ser bons pontos de vista para revisitar essa comprida Província, desculpem, Região ou, dito à maneira antiga, Reino dos Algarves.
Pareceu muito interessante e significativo (quantas vezes a história se constrói através destas singulares coincidências), que poucos dias após o início desta nossa romaria, aqui mesmo em Vila Real de Santo António, onde iniciámos a jornada, Forças Vivas nacionais e locais tenham assinado um milionário contrato para a electrificação e melhoramento da linha ferroviária do Algarve. Ora parabéns! a quem foi capaz de concretizar esta antiga promessa, que já parecia aos algarvios mais fantasia que realidade, e votos de que a obra seja executada nos prazos previstos.
Com esta esplêndida notícia, a nossa viagem recém-começada adquiria, pois, o tom melancólico das coisas que se extinguem para dar lugar ao futuro. Mas que importa?, ao fim e ao cabo não somos mais que coisas passadas à espera de futuros que ainda não chegaram…
Ao contrário do que pensei, o António não me vai acompanhar nesta fase exploratória. “Vai lá primeiro, fazer a repérage”(2), disse-me ele, “depois iremos os dois fotografar os sítios que tiveres escolhido”.
Conclusão, fui deitado aos leões, mas não me deixei abater. Em primeiro lugar fui dar uma vista de olhos à minha bibliografia. Nas Crónicas Algarvias(3) descobri o seguinte: o Manuel da Fonseca veio de comboio para o Algarve mas logo o trocou pela camioneta, talvez por uma questão de horários ou outra – que sei eu? – e fez um percurso contra o vento, ou seja, de Sotavento para Barlavento e não o inverso, o que pareceria mais natural (a mim, pelo menos, que sou velejador). Também José Saramago na sua rápida passagem pelo Algarve a iniciou por Vila Real de Santo António e, à semelhança do Fonseca, foi de rabinho tremido, fazendo assim uma desconsideração à ferrovia algarviana. Ora aí é que eu (nós…) vou agir diferentemente. Parto de Vila Real, mas irei de comboio, de estação em estação, de apeadeiro em apeadeiro e só descansarei quando pousar os pés na plataforma firme de Lagos, cidade das descobertas marítimas e local onde os negros escravizados, por entre as grades e os grilhões, tiveram um primeiro vislumbre da civilização europeia.
Tenho expectativas muito positivas desta peregrinação a que nos propomos. Peregrinação, digo bem, pois não é só em direcção a Deus que os passos da fé são justificados, também em relação ao Belo esses passos o são, e a maior ou menor dificuldade em alcançá-lo é o sal dessa abertura ao desconhecido. Confesso-o aqui, com algum acanhamento, que espero muito do olho clínico do António, ou das suas poderosas objectivas fotográficas, que captam não só a forma como também o coração das coisas. E o ser humano é também uma coisa viva, e em relação a ver essas coisas o António é inexcedível. Como o Fonseca há cinquenta anos, eu e o António iremos à procura dos rastos, dos símbolos, dos sinais da humanidade, escondida sob a parafernália da civilização técnica que todos nós, a bem ou a mal, habitamos. Vai custar? Será fatigante? Talvez, mas a demanda nestas matérias de Deus e do Belo, sobretudo se for feita sem esforço, é fatigante ou, fazendo minhas as palavras do Manuel da Fonseca, “Aceitar passivamente a beleza cansa.”(4)
Fica então assim decidido: embarco em Vila Real de Santo António e umas horas, dias, semanas, meses depois, desembarco em Lagos. Entre estas duas balizas se situará o meu Algarve. Não será “todo” o Algarve, porque região alguma cabe no bico de nenhuma caneta, mas o Algarve a que eu, muito humildemente, poderei aceder.
A partida
Seria pedir demais que se pudesse apanhar o comboio no centro de Vila Real de Santo António, ao que os locais chamam Baixa-Mar? Antigamente o terminusda linha férrea ficava num edifício airoso, junto à alfândega nova e do cais onde acostam os barcos que fazem a travessia para Ayamonte. Agora, porém, é necessário embrenharmo-nos por umas ruas compridas, marginadas por fábricas em ruínas ou armazéns abandonados para nos depararmos com o edifício da estação que nos contempla tranquilo e sólido ao fundo de uma rua. É uma bonita construção, datada de 1945, de linhas direitas e vagamento déco, um pouco ao arrepio do aspecto mais tradicionalista de outras estações. O traço foi de um grande arquitecto, Cottinelli Telmo.
Apesar da elegância da estação, digo para com os meus botões que não deve ser nada fácil a uma família de turistas carregada de malas e embrulhos desembarcar ali. Talvez por isso não desembarquem e seja essa uma das (muitas) razões do crónico congestionamento da “125”.
Aguardo na plataforma a chegada do comboio. Sinto pairar no ar uma estranha mistura de urbanidade e ruralidade: cavalos pastam nos terrenos à volta enquanto a roupa seca nos estendais de prédios modernos. A temperatura cálida recorda as férias grandes. Do outro lado dos carris, por trás de uma extensa vedação de arame, uma estrada pouco movimentada ladeia o sapal em direcção a Castro Marim. Em paralelo, uma ciclovia acompanha a estrada. Tudo está mergulhado num pacífico silêncio, mas sobre tudo isso paira um ar de desleixo e indiferença. O comboio aproxima-se devagar, com uma automotora ruidosa e duas carruagens das quais descem trinta e tal pessoas. Metade são estrangeiros com uma certa idade. Dois trazem bicicletas. Embarco. O meu destino é Monte Gordo. Reparo agora que não fiz nenhum comentário sobre a cidade em que embarquei, e tanto que haveria para dizer sobre essa pérola do Despotismo Esclarecido. Tem que ficar para outra crónica. Prometo.
Desembarco em Monte Gordo cheio de expectativa de encontrar algo do que Manuel da Fonseca 50 anos atrás descreveu nas suas Crónicas: o novo Casino e os seus arruamentos por terminar; o “cuíco” valente enfrentando os meninos arruaceiros, os velhos ingleses apoiados nas suas bengalas de castão de prata a fugir do vento agreste… mas nada.
Para minha surpresa, a estação de Monte Gordo desemboca num largo solitário com meia dúzia de casas. Por entre as árvores, cavalos sacodem as nuvens de moscas enquanto tasquinham a erva rala. Mas o que é isto? espanto-me eu. Um homem que veio até ao largo deitar lixo no contentor informa-me que andar dali até à vila é coisa para uma boa meia hora. Sinto repentinamente o intenso calor do dia e percebo que cometi um erro de planeamento. Não! Não vou andar meia hora para cada lado sob este calor tropical. Vou ficar por aqui, à sombra, mas terei que esperar um tempão pelo próximo comboio. Que seca! Atravesso a linha para o lado do sapal e fico a observar a vida dos flamingos e demais bicharada alada que o povoa. O tempo vai passando. As moscas, muito excitadas com a sua nova vítima, revoluteiam esfomeadas. À falta de cauda, como a dos cavalos, sacudo-as com as mãos.
A resiliência é uma qualidade que não deve faltar a um viajante(5), pelo que é com relativa placidez que assisto à entrada ruidosa da automotora na estação de Monte Gordo. Entro. Sento-me junto a uma janela. Próximo destino: Castro Marim. Excelente! Antegozo os seus castelos e fortalezas; as igrejas da Ordem do Templo (desculpem, de Cristo), e a visão da imensidão que separa duas nações em tantas coisas tão parecidas. Apita o comboio, vai partir. Estremece, range. Partiu.
(1) Esta crónica vem na sequência das três anteriores pelo que é conveniente conhecê-las.
(2) A repérage, palavra adoptada do francês, significa: a) a acção de determinar o lugar de qualquer coisa num espaço; b) a pesquisa dos cenários onde terão lugar as filmagens.
(3) É mesmo importante ter lido a última crónica (e até mesmo a penúltima) para compreender melhor estas citações.
(4) Manuel da Fonseca, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa, 1986, p. 164
(5) Tomo emprestado o termo “viajante” que José Saramago utiliza na sua Viagem a Portugal, referindo-se a si próprio, termo igualmente utilizado pelo seu émulo, Diego Mesa, na Viagem ao Algarve.
* O autor não escreve segundo o acordo ortográfico