A página que se começou por chamar Livros.S e, depois, Da Minha Biblioteca faz agora uma pausa.
Ao longo de pouco mais de sete anos escrevi 85 artigos de promoção de leitura. A intenção era partilhar o modo como lia e interpretava alguns livros que, em diversas fases da minha vida, me tinham interessado por diferentes razões. Foi um desafio que me deu muito prazer e que, espero, também tenha sido do agrado dos leitores.
Porém, ao atingir os sete anos, pensei que era altura de mudar. Tendo o editor do Cultura.Sul aceitado esta minha vontade e, generosamente, mostrado interesse em que eu continuasse a escrever aqui, propus-lhe o seguinte: uma página menos espartilhada na temática, onde pudesse registar algumas reflexões sobre o fascinante mundo da antiguidade greco-latina, sempre em contacto íntimo com este mundo, onde vivemos. Porque não estão nada, nada longe. Lembro-me muitas vezes da frase que George Santyana escreveu, em 1905: «Those who cannot remember the past are condemned to repeat it» (The Life of Reason, I. 12), isto é, «Aqueles que não conseguem lembrar-se do passado estão condenados a repeti-lo».
Mas esta não será uma página passadista. Será uma página que reconhece que no passado há muito para aprender sobre o presente. Ou que entenderemos melhor o presente se reconhecermos o passado.
O título
Houve, depois, que decidir o nome a dar a esta nova página. Muitas foram as ideias que tive, mas a que mais se aproximou da noção de espaço aberto, onde se cruza muita gente, de muitas culturas, onde se fazem novas amizade, onde os conhecidos se encontram, foi Na Ágora.
A ágora era a praça central das cidades gregas. Era aí que a vida coletiva palpitava. Era aí que os cidadãos se reuniam, cumpriam com os seus deveres religiosos (os templos iam sendo erguidos nas suas proximidades), faziam compras no mercado, debatiam informalmente os assuntos do governo, que a todos dizia respeito. Em grego, cidade diz-se pólis (que já faz parte do nosso vocabulário e escreve-se assim mesmo), de onde vem o adjetivo politikós, que deu o nosso «político», que significava o que dizia respeito aos cidadãos.
Apesar de haver outros espaços para mercadejar, esta praça pública, por ser um lugar de passagem e com muita atividade, era o preferido dos negociantes. Conta-se, mesmo, que Sócrates, de quem Platão foi discípulo, ao passar pela ágora, «quando reparava na quantidade de coisas que havia à venda, dizia para si próprio: “De quantas coisas eu não tenho necessidade!”. E recitava continuamente estes versos: “As travessas de prata e as roupas de púrpura/ são úteis para os atores trágicos, não para a vida.”» (tradução minha de Diógenes Laércio, autor grego do séc. III d.C., conhecido por ter escrito Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres).
Sócrates insurgia-se contra o consumismo, o acumular de bens desnecessários para a vida. Conta-se também (podemos ler no mesmo Diógenes Laércio) que, quando Alcibíades lhe deu um terreno muito grande para que construísse uma casa, recusou, por achar um desperdício, dando o seguinte exemplo: «Se me fizessem falta umas sandálias e, para que eu fizesse as ditas sandálias, me desses uma pele inteira, também seria ridículo se aceitasse».
No mundo romano havia também um espaço equivalente à ágora, que era o fórum (em latim apenas não tinha acento). Também ele era o centro da vida das cidades: desde as atividades mais solenes (como as religiosas), passando pelas civis (relacionadas com a política), e as mais corriqueiras e mundanas, como os mercados e os divertimentos.
Uma curiosidade etimológica: o adjetivo latino civilis é da mesma família de civis, o substantivo que quer dizer «cidadão». Portanto, politikós e civilis queriam dizer a mesma coisa. Nos dicionários de português, a primeira aceção de político é «relativo à política ou aos negócios públicos», enquanto civil diz que é «relativo ao cidadão». Terão os cidadãos passado a envolverem-se menos nos negócios de Estado e a achar que políticos são apenas uns tantos profissionais?
Dezembro
«Estamos em Dezembro: a cidade está coberta de suor! A ostentação desregrada invadiu toda a vida colectiva. Fazem-se estrepitosamentre enormes preparativos, como se existisse alguma diferença entre o período das Saturnais e os dias úteis. O facto é que não há qualquer diferença, e por isso mesmo acho que tem toda a razão quem afirma que se Dezembro em tempos foi um mês, agora é um ano inteiro».
Como as aspas o denunciam, o texto não é meu. Nem é de agora. Tem quase 2000 anos.
O seu autor, Séneca, nasceu aqui perto, em Córdova, poucos anos antes de Cristo. Foi viver para Roma, onde morreu, no ano 65 d.C. Tutor e posteriormente conselheiro de Nero, foi por este forçado a cometer suicídio, por suspeita de participação numa conspiração contra a vida do imperador.
Entre a sua variada obra, encontram-se estas Cartas a Lucílio (de que já aqui falei), escritas nos últimos anos da sua vida. A transparente tradução que citei é da autoria de José António Segurado e Campos, professor catedrático jubilado de Literatura Latina (da Universidade de Lisboa), de quem tive o privilégio de ter sido aluna, e diz respeito à Carta 18. A edição é da Gulbenkian e o preço muito acessível. Segurado e Campos, numa nota à Carta 12, explica: «Por ocasião das Saturnais (Saturnalia), antigas festas do calendário romano celebradas por volta de 17 de Dezembro de cada ano em honra de Saturno, era costume haver troca de presentes entre amigos, e mesmo, como é aqui o caso, entre senhores e escravos».
Não querendo promover o consumismo (que Sócrates me perdoe!), será um excelente presente de Saturnal. Ou de Natal.
(Artigo publicado na edição papel do Caderno Cultura.Sul de Dezembro)