Otelo Saraiva de Carvalho, militar e estratego do 25 de Abril de 1974, morreu hoje de madrugada aos 84 anos, no hospital militar, disse à Lusa Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril.
A notícia da morte de Otelo foi inicialmente avançada pela TSF e confirmada depois à Lusa por Vasco Lourenço.
O coronel de artilharia elaborou o plano de operações militares do 25 de Abril de 1974.
Otelo Nuno Romão Saraiva de Carvalho nasceu em Lourenço Marques, hoje Maputo, capital de Moçambique, no dia 31 de agosto de 1936.
Otelo Saraiva de Carvalho foi mobilizado para Angola, em 1961, como capitão de artilharia, ali permanecendo em comissão de serviço até 1963.
Foi estratega do setor operacional da comissão coordenadora do MFA, condição em que dirigiu as operações do 25 de Abril, a partir do posto de comando clandestino instalado no quartel da Pontinha.
Morre um dos principais rostos do Movimento das Forças Armadas (Movimento dos Capitães). A sua casa foi um dos centros de onde fervilhou a luta contra o regime ditatorial que se viva em Portugal. Ali, realizaram-se encontros e reuniões que delinearam os esforços de combate ao regime.
Foi Otelo quem desenhou as operações militares que acabaram com o cerco ao Largo do Carmo, em Lisboa. Aliás, um tema sobre o qual falava abertamente, não só em livros, como em vídeos.
Chegou a ser candidato à Presidência da República, tendo saído derrotado nas duas eleições a que concorreu por Ramalho Eanes.
“Apesar dos excessos, a revolução foi um êxito”
Otelo Saraiva de Carvalho na sua casa, em Oeiras, vê pela primeira vez o mapa do 25 de abril. Foto D.R. Tiago Miranda
No dia do desaparecimento de Otelo Saraiva de Carvalho, republicamos a entrevista que deu a Clara Ferreira Alves nos 40 anos da revolução. Artigo originalmente publicado na edição da revista do Expresso de 25 de abril de 2014.
Queria ser ator, mas entrou na vida militar por conselho do avô. Foi este quem lhe fez ver que só poderia derrubar a ditadura estando no Exército. Controverso, há quem o ache um herói e quem veja nele um terrorista. Mas sem Otelo não teria existido a revolução de abril.
Otelo. Sem mais nomes. O operacional do 25 de Abril. O que teve a “ideia de manobra”. E a coragem, como muitos outros. Está com 77 anos e lembra-se de tudo, como se fosse ontem. Datas, nomes. Fez o liceu em Lourenço Marques, onde o pai era funcionário dos Correios. Era o mais novo de três irmãos. Havia uns colegas de liceu que se metiam em política, um deles o filósofo Fernando Gil, e foram perseguidos. Havia leituras de “O Capital”, de Karl Marx. Otelo foi aconselhado pelo pai a não se meter nisso mas não apareceu na prisão para visitar um colega seu, sem direito a visitas. “Aquilo incomodou-me”.
Em Lisboa, as conversas políticas eram com o avô, mas o que Otelo queria era “ir para o Actor’s Studio de Nova Iorque”. Gostava muito de teatro e tinha feito muita coisa de teatro. Na Escola do Exército, chegou a convencer o comandante a fazer teatro com os cadetes da Academia Militar, levando uma peça de Couto Viana, “O Acto e o Destino”, ao Tivoli e ao Nacional. “Já pisei o palco do D. Maria II”, conta. Otelo fazia o papel de soldado de Mouzinho regressado das campanhas e recebeu “uma ovação em palco de dez minutos”. O avô aconselhou-o a entrar para a vida militar, a escola do Exército. Otelo tinha 17 anos e acabado de fazer a milícia obrigatória da Mocidade, não sentia vocação, coisa que o sargento e o capitão da milícia confirmaram. “Eles não te conhecem, meu filho”, disse o avô. “Gostei muito de ser oficial do Exército, de ter o contacto com o povo, os soldados, os sargentos milicianos… transmiti-lhes alguns valores e todos os anos tenho almoços de confraternização com a malta que esteve sob minhas ordens, aqui, em Angola e na Guiné, e que me dizem emocionados que fui fundamental para a sua formação como homens. Isto enche-me de conforto e de orgulho”. A mãe via-o num futuro com botões doirados, numa carreira que o levasse a governador de distrito, posto importante nos anos 50.
Foi promovido a alferes, e a 4 de fevereiro de 60 rebentou a guerra em Angola, com o ataque dos militantes do MPLA às prisões de Luanda. A 15 de março de 61, “a UPA invade o norte de Angola e chacina, em ação terrorista pura, toda a gente que vai apanhando nas fazendas”. Em abril, Otelo é mobilizado e em junho arranca para Angola para comandar um pelotão. Era um alferes casado pela Igreja, obrigatoriamente.
“Depois vinguei-me, nunca batizei nenhum dos meus filhos e tive uma complicação por causa disso, na Guiné, onde morreu em horas, com 7 anos, uma das minhas filhas, com paludismo cerebral”. O avô que o tinha mandado para a vida militar disse-lhe um dia: “Vivemos numa ditadura, é certo, e como me disseste que um dia gostarias de poder participar na queda deste regime, digo-te que só o poderás fazer se estiveres no Exército”. Otelo fica arrepiado quando pensa nisso. E aqui começa esta história.
Angola foi a primeira guerra.
O meu curso foi todo mobilizado. Defender a pátria, o território nacional que tinha sido conquistado desde o século XV, as possessões do grande império ultramarino português. Fui logo para Norte, para Malanje, e ainda mais para cima, para Cateco Cangola, a noroeste. Havia oito casotas de comerciantes portugueses, era um posto administrativo. Era uma zona relativamente calma, apesar dos problemas que tinha havido com uma companhia de caçadores, que consegui normalizar. Um soba construiu uma palhota imponente para mim, na sanzala, e pôs o escudo português sobre a porta. A minha mulher, que estava grávida da primeira filha quando fui mobilizado, reuniu-se-me. Passei ali 16 meses e depois toda a companhia foi transferida, em ponte aérea, para São Salvador do Congo. E aí foi pior. Ocupámos uma sanzala e transformámos aquilo em quartel. Até 63, quando regressei.
Gosta de África?
Muito. Os grandes espaços, e gosto daquela gente africana. Gente pura. Podem ser de um selvajaria monstra mas são também gente boa.
E depois de regressar a Lisboa?
Fui promovido a capitão e mobilizado outra vez em 65, para comandar uma companhia em Angola, na Mucaba. A Mucaba foi um lugar terrível no início da guerra, porque havia a serra da Mucaba, de densíssima vegetação, e a serra do Uíge, com grandes grupos de guerrilheiros que tinham quartéis no interior das florestas.
A Mucaba tinha sido violentamente atacada e os brancos tinham-se refugiado no interior da igreja, sendo também atacados violentamente.
Quem os livrou foi o major Diogo Neto, que estava na base do Negage e fez um bombardeamento a toda a volta da Mucaba com o avião dele. Estive ali de 65 a 67, com a mulher e os meus três filhos entretanto nascidos. Regressei em 67, e só tivemos três baixas, na companhia, uma delas nem sequer foi em combate. Sofri muitas emboscadas na serra mas também destruí muitos acampamentos de guerrilheiros.
Praticou algum ato que hoje possamos descrever como atrocidade?
Na metrópole circulavam fotografias de cabeças cortadas de pretos, enfiadas nos jipes. E empalados à beira do caminho. Nunca permiti isso. Horrorizava-me o olho por olho dente por dente. Camaradas do meu curso ficaram orgulhosos disso. A guerra muda as pessoas.
Regressei e fui para professor na Escola Central de Sargentos, em Águeda, três anos. É daqui que parto, em 70, para a Guiné. Fui substituir um capitão que tinha morrido numa queda de helicóptero, com um grupo de deputados. A Guiné é um país do tamanho do Alentejo com pelo menos 32 etnias diferentes. Era giro! Na Guiné estava o Alpoim Calvão…
O homem da Operação Mar Verde.
O Calvão tem uma coragem monstra, sou muito amigo dele, é o Rambo português. Quando ele foi com o Spínola para Espanha para fundar o MPLP telefonou-me. Otelo, estás bem? Olha, é para te dizer que estou a preparar aqui uma tropa, para invadirmos Portugal! E eu respondi, Guilherme, quando vieres avisa para eu estar a pau! Ficou tudo estarrecido.
As diferenças políticas nunca toldaram a camaradagem militar?
Nunca. Sou muito amigo do Eanes e estivemos em trincheiras diferentes. Ele esteve na perspetiva que os levou ao Grupo dos Nove, à amizade com o Carlucci e à queda da revolução, e eu tinha uma perspetiva oposta. A amizade depende dos homens. Nunca tive amizade com o Jaime Neves. E vi-me coagido, em terceira escolha, a ter de lançar mão do Jaime Neves para uma ação que eu queria dar a um major dos comandos no 25 de Abril. E o Jaime Neves, foi a sensação que tive e tenho, quis sabotar o 25 de Abril. Não cumpriu.
A Guiné mudou a sua cabeça?
Foi fundamental. Acabei a conhecer o país todo e as populações, até dos países limítrofes como a Guiné-Conacri e o Senegal. E tive acesso a livros proibidos, como o do Basil Davidson, que esteve lá e entrevistou o Amílcar Cabral, acompanhando o PAIGC. Os textos do Amílcar Cabral eram objeto de estudo para a nossa ação psicológica. Aquilo bateu-me forte, o que ele dizia, que não lutava contra o povo português mas contra um regime colonialista e fascista.
O meu tio, um irmão da minha mãe de quem eu gostava muito e que foi importantíssimo na minha formação, tinha conhecido o Amílcar na Casa dos Estudantes do Império e dizia maravilhas dele.
Quando é que se sentiu do lado errado?
Na segunda comissão em Angola, apesar de ter cumprido, tive a perceção de que o interesse fundamental da nossa presença em África era manter o território como fator de riqueza para grandes empresas e grupos financeiros. Não era bem a defesa do território pátrio. Os soldados lutavam por uma causa que não compreendiam.
Quando me perguntam se é possível fazer um segundo 25 de Abril, digo que não.
Não há soldados. Nem soldados contrariados em teatros e operações de guerra, em revolta latente, sabendo que podiam voltar num caixão de pinho. De 200 mil passámos a 23 mil nas três Forças Armadas. Os homens são voluntários e aquilo é um posto de trabalho.
E além dos livros proibidos?
O Spínola foi importante. Ele tinha um passado fascista tramado, o pai tinha sido chefe de gabinete do Salazar, conhecia o Spínola desde miúdo.
O Spínola era complexo e fascinante. Tive com ele contenciosos tramados. Em Angola, o Spínola ainda era tenente-coronel e tinha sido imposto pelo Costa Leite Lumbrales, ministro da Presidência, ao Champalimaud quando ele pediu o alvará para montar a Siderurgia. O Costa Leite tinha sido aluno de equitação dele. E lá foi o Spínola para o Conselho de Administração.
Uma vez falei com o Champalimaud sobre isto no Rio de Janeiro, fui lá almoçar com ele.
Amigos estranhos.
Gostava muito do Champas. Um tipo com uma visão bestial e que por ironia, nessa altura, estava quase cego. Almoçámos no escritório dele, junto ao aeroporto Santos Dumont, com vinho Periquita que ele mandava ir em caixas de Portugal. O Ricardo Bayão Horta é padrinho da minha filha mais velha, foi diretor químico da Siderurgia e foi quem me pediu para almoçar com o Champalimaud no palacete da Lapa a seguir ao 25 de Abril. E o Champalimaud perguntava: ó Otelo, diga-me lá o que vai acontecer ao país economicamente! Qual o rumo. E eu respondi-lhe: não sei, nós não estudámos o dia seguinte.
Disse que as províncias alimentavam os grupos e as famílias que mandavam e Champalimaud estava no centro disso. Devia ser o seu inimigo natural, o homem de uma dinastia financeira.
Não teve preconceito?
Nunca. Tanto que nesse período, vamos chamar-lhe do PREC, fui convidado pelos Espíritos Santos, o Manel e o Jorge, não me lembro se fui pelo Quintas…
O Champalimaud acabou no Brasil.
O capital não tem fronteiras. Ele tinha interesses em todo o lado, da Austrália ao Brasil. Quis o Brasil porque se sentia lá bem instalado. Tinha enveredado pela produção de gado bovino e estava encantado com uma nova erva para alimentar o gado que numa semana crescia 20 cm. Sempre o considerei enormemente. E foi nessa altura que ele me disse que o Spínola, de quem ele não gostava, lhe tinha sido imposto.
Qual a relação de Champalimaud com Salazar?
Acho que o achava um homem inteligente mas tacanho. Estreito. O Salazar é outro tipo complexo. O Samora Machel disse-me uma vez em conversa que a personalidade portuguesa que ele mais admirava era o Salazar! Eh, pá, disse eu, aquilo da modéstia e da honestidade não chega, ele governou dezenas de anos em ditadura copiada do fascismo italiano. E o Samora respondeu que a qualidade dele devia ser grande, justamente porque um homem sozinho conseguira dominar um país inteiro dezenas de anos. De 1932 a 68, é impressionante. Claro que o António Ferro fez a moldura do retrato de Salazar, do mito.
Alguma vez falou do Salazar com o Spínola?
Não. Ele foi uma vez chamado ao gabinete do Salazar que lhe diz, prepare-se, vai ser o comandante-chefe da Guiné. E vai como general.
Ascensão meteórica, mas o Spínola saiu aureolado de Angola, como chefe militar, por causa do boca a boca dos soldados. O Spínola comandante de batalhão, tenente-coronel com 52 anos, ia com os soldados para a mata. De pingalim, com oito carregadores pretos que lhe transportavam os sacos, a cama de campanha, tenda, meias e botas secas, uniformes secos, fazia uma guerra de luxo. Ele é que pagava aos carregadores. Mas a verdade é que ia com eles para a mata. Os soldados dormiam ao relento e o Spínola na tenda mas estava com eles nas emboscadas. Um tenente-coronel velho, com 52 anos. E para ele ter os solados na mão fazia coisas tramadas. Na Guiné, saía todos os dias de helicóptero, de surpresa, para qualquer ponto do território. Mandava formar e ouvia as queixas dos soldados. E depois dizia ao comandante do batalhão, se houvesse queixas, que ia ser substituído. À frente dos soldados! Era adorado por isto. E depois fez uma coisa contraditória, que adorei. Os congressos do povo da Guiné.
Ele rodeou-se lá de um grupo de oficiais notáveis, não só os spinolistas ferrenhos. E não só os de Cavalaria ou do Colégio Militar. Firmino Miguel, Lemos Pires, Carlos Fabião… um naipe do melhor. E estes vão-lhe abrindo horizontes democráticos que levam o Spínola a fazer os congressos do povo da Guiné. Todos os anos, durante três dias, eram eleitos elementos de todas as tabancas da Guiné, controladas por nós, alojados em Bissau, para se reunirem no único teatro com mesa formada por oficiais do quartel-general. Faziam as queixas que eram levadas ao Spínola. Democracia direta. Eu organizei lá o último 10 de junho, as condecorações para os nossos e para os milícias negras. Um estadão, com as altas entidades no patamar superior e eu de mestre de cerimónias. Fiz a chamada de um milícia para ser condecorado pelo Spínola com a Cruz de Guerra. E o general diz-me, em plena cerimónia, eu não condecoro este gajo! Avança o Pedro Cardoso para condecorar. Fiquei com aquela engavetada. Não havia engano meu, e quando o Spínola apareceu a fazer a ronda das repartições do quartel, levei-lhe os catrapázios para provar que tinha razão e ele, não me interessa, já lhe disse o que tinha a dizer! O Almeida Bruno, que o conhecia de ginjeira, é que me disse que eu tinha cometido um erro em relação ao general, que era um vaidoso. O milícia que eu tinha chamado tinha quase dois metros de altura. Por isso é que ele não condecorava.
Ficava pendurado no preto!
Quando começam os movimentos dos capitães?
É na Guiné. Os capitães que vêm passar férias a Lisboa regressam com a notícia de que tinha sido publicado um decreto que abre as portas do quadro permanente a malta civil que tenha sido alferes miliciano algures no império português sem ser preciso terem estado em combate ou no teatro de operações. Considerando a patente de tenente com que tinham passado à disponibilidade. Começámos a reunir no Clube Militar. Como é isto? Somos confrontados com um paisano que de repente quer entrar no quadro e é logo feito capitão com dois estágios semestrais enquanto nós andamos aqui há anos? Aquilo era o Governo em desespero, porque a frequência da Academia Militar tinha baixado drasticamente. A política colonial empurrava-o para a guerra e a vitória militar a todo o custo.
O capitão era a pedra basilar da guerra e havia falta de capitães. Nós andávamos há 12 anos numa guerra que já não tinha sentido e que delapidava 45% do orçamento do Estado.
O movimento começa com uma reivindicação corporativa.
Absolutamente. A guerra na Guiné estava a perder-se. Queríamos conversações com a malta do PAIGC. Tínhamos o domínio do espaço aéreo mas na fronteira o PAIGC fazia bombardeamentos de artilharia. Estavam sempre dois FIAT armados que levantavam em menos de dez minutos. Em março de 73, aparecem os mísseis terra-ar soviéticos e o PAIGC dispara contra o avião e este cai. Em dois meses, cinco aviões foram abatidos e a Força Aérea recusa-se a cumprir essas missões. As guarnições portuguesas começam a abandonar os postos de fronteira, que fica aberta aos guerrilheiros. O Spínola vem cá passar férias e tem uma conversa com o Marcello. Já o Amílcar tinha sido assassinado mas havia outros quadros do PAIGC com quem falar, através do Leopold Senghor. E o Marcello diz negativo, nada de conversas com terroristas.
Se houvesse negociações na Guiné perdia-se Angola, e Angola era a mina de ouro.
Era onde a situação militar estava mais dominada por nós. Havia uma divisão dos movimentos de libertação, a UNITA, do Savimbi, a FNLA, do Holden Roberto, e o MPLA, do Agostinho Neto.
Para Salazar, ceder o império era impensável.
E cria esses mecanismos todos do Estado autoritário, a censura, a polícia política, a milícia política da Legião Portuguesa para dar apoio ao Franco na Guerra Civil de Espanha…
O Otelo não esteve na Legião Portuguesa? Quem?
Não! Fui instrutor de legionários de Cascais. De ginástica. Nunca estive na Legião nem sei onde era a sede. Um capitão que havia lá, chefe da secretaria, pediu-me para dar instrução de educação física. Ainda por cima era aos domingos, dois por mês. E davam-me 400 escudos, o que era bestial para a altura. Fiz o sacrifício mas só estive dois meses, não aguentei.
Era malta que estava na Legião para garantir emprego. Eu cheio de fumaças de atleta e eles apareciam-me para fazer ginástica de casaco.
Deprimente.
O miserabilismo. Voltando ao Movimento dos Capitães…
O Spínola diz ao Marcello que não está disponível para uma derrota militar tipo Índia e que não regressará à Guiné. Isto em 73. Ele está a preparar “Portugal e o Futuro”, que é para sair em fevereiro de 74. Em agosto de 73 lançamos a ideia de um manifesto contra os decretos. Bati-o à máquina e recolhi 52 assinaturas. Mandei os documentos para cá, em correio de Bissau, endereçados ao Américo Tomás [o último presidente do Estado Novo] e ao Caetano… A 5 de setembro.
Para a minha geração, o Tomás foi sempre uma anedota.
Esta é a primeira vez que aqui estou desde a última vez que aqui estive [cita Tomás]. Nem o considerei como objetivo militar. No 25 de Abril, deixei-o em casa sossegadinho, depois foi lá o Almeida Bruno, já liberto da prisão na Trafaria, buscá-lo. Para mim, o fundamental era o Marcello. Mandei os documentos e uns dias depois reuniram-se no Alentejo 136 oficiais, que assinaram outro manifesto que entregaram no gabinete do Caetano. E vieram manifestos de Angola e Moçambique, ao todo representavam 700 capitães do Exército. O Marcello teve medo.
Iam abrir um processo contra todos eles?
Meteu aquilo debaixo do tapete e em outubro anunciam a revogação dos decretos. Face ao sucesso alcançado, em outubro de 73 abre-se a perspetiva de dar continuidade àquilo com um movimento de oficiais das Forças Armadas. Quem teve esse trabalho notável, porque frequentava os salões e era genro do chefe do Estado-Maior da Armada que se perfilava para ser o sucessor do Américo Tomás, foi o Vítor Alves. Major do Exército. E nasce o Movimento de Oficias das Forças Armadas. Vamos organizar-nos a partir de dezembro de 73, convocando um plenário.
Já sabíamos que estavam criadas as condições para um dia derrubarmos o Governo.
Quem é o primeiro a pensar, ou a dizer, vamos deitar abaixo o Governo?
O Vasco Lourenço e eu tínhamos trocado impressões.
Em 23 de novembro de 73 houve uma reunião do movimento. Eu tinha acabado de pôr os galões de major. Nessa reunião aparece o tenente-coronel Luís Banasol. O homem estava desesperado, ia para a Guiné em 5ª comissão, farto, teve uma intervenção explosiva. Isto, meus caros amigos, não vai lá com papéis, só vai à porrada com uma revolução! E pôs o batalhão dele à ordem. Houve logo quem dissesse, calma, calma, mas causou impacto. Antes disso, tínhamos exigido do Governo uma maior capacidade de intervenção na guerra, melhor armamento, melhor instrução, melhores viaturas. Nessa reunião elege-se uma comissão organizadora executiva, clandestina, com uma direção permanente, o Vítor Alves, o Vasco Lourenço e eu. Escolhem-se os generais para um dia, se derrubarmos o Governo, criarmos um diretório militar que assuma a responsabilidade política do país. São Costa Gomes e Spínola. Uns dias depois fazemos uma reunião na Costa da Caparica onde aparece pela primeira vez o Vasco Gonçalves. Queremos atrair para o movimento, além de majores, tenentes-coronéis e coronéis, os generais. Em janeiro de 74, somos recebidos, o Vasco Lourenço e eu, pelo Spínola, já nomeado vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, general de quatro estrelas.
Uma função que não existia mas o Marcello não sabe o que fazer com o elefante na loja de loiças. Dissemos-lhe que queríamos derrubar o Governo e que seria ele com o Costa Gomes a assumir as mais altas funções políticas do país num diretório militar. Em fevereiro de 74, entra gente importante no movimento. O Melo Antunes, que tinha sido candidato a deputado pela CDE e era um homem interessado na atividade política, o Garcia dos Santos, o Charais…
Nessa reunião de 5 de fevereiro, o Melo Antunes é encarregado por nós de elaborar um texto para ser lido por ele num plenário de março, em Cascais, que defina a filosofia política do movimento. Ele escreve um excelente texto, que é lido em minha casa em Oeiras. ‘O Movimento, as Forças Armadas e a Nação’ é o título. O texto recolhe 111 assinaturas.
Como é que conseguiam manter isso secreto, com tanta gente misturada?
Quase 200 homens metidos num primeiro andar da Rua Visconde da Luz em Cascais. Foi espantoso o efeito surpresa que conseguimos manter até ao 25 de Abril. Mas dessa reunião houve uma fuga porque três dias depois o Vasco Lourenço e mais três capitães recebem despacho do ministro do Exército para transferência imediata para os Açores. Resolvemos fazer uma greve de zelo nas unidades e exigir aos comandantes a não-transferência dos camaradas.
No dia 11, o ajudante de campo do Spínola contacta-me por causa de “Portugal e o Futuro”.
Com o lançamento do livro a 23 de fevereiro de 74, fica em perigo a posição do Spínola e do Costa Gomes. O Marcello anunciou ao Spínola que se o livro fosse publicado se demitia, colocando-lhe um problema de consciência. Um dia ia a passar na Rua das Pretas e encontrei-o, dentro do carro com o motorista. Ele chama-me. Ó Otelo, o Marcello não me deixa publicar o livro, diz que se demite! E eu disse-lhe que era isso que a gente queria mas ele respondeu que nunca seria um general que derrubasse o Governo. Eu garanti-lhe que o Marcello não se demitiria. Ou, se se demitisse, não era aceite. O livro é publicado. No dia 11 de março, recebo a chamada do António Ramos, o ajudante-decampo, vamos almoçar. Ele diz-me que daí a três dias vai haver a presença dos generais em São Bento. A brigada do reumático. Vão prestar vassalagem ao Marcello e o Marcello vai exonerar o Spínola. O general queria saber, disse ele, se o Movimento não ia fazer nada. Disse-lhe que o Movimento tinha estudado hipóteses, mas que o general devia saber que o livro ia ser uma bomba. 100 mil exemplares numa semana! O general propunha que o Movimento, fardado, de luvas e espada na mão, fosse para a frente do Ministério do Exército protestar contra a brigada do reumático. Negativo! Ia dar azo a que os fotógrafos da PIDE entrassem em ação, íamos ser fichados. Entretanto, tinha acabado de regressar da Guiné o Casanova Ferreira, muito voluntarioso e querido dos capitães, que fica todo tramado e me pergunta se tenho contacto com as Escolas Práticas, as unidades mais fortes. E diz-me para convocar uma reunião para casa dele, para tratar disso. E nessa reunião pergunta se queremos preparar a ação para impedir a brigada do reumático. Espanto-me. Disse que tinha de ser uma coisa preparada, não podia ser à papo-seco. Isto dia 12 de manhã. No dia 12 à tarde, reunimos outra vez, já com a malta da comissão coordenadora executiva. Estava o Garcia dos Santos, o Monge, que também tinha vindo da Guiné. Saiu da reunião um rabisco do Casanova que diz que a Escola Prática de Cavalaria vem com uma coluna de blindados e fica na Encarnação à espera. Tu, Otelo, pede uma bateria de artilharia e fica à espera. Eu disse logo que aquilo não ia dar nada, era uma barraca. E as transmissões? Ele achava que se saísse uma unidade ou duas o Governo caía. Ó Otelo, sabes o que era melhor? Se conseguisses uma bomba de 250 quilos lançada pela Força Aérea sobre a Assembleia Nacional, para rebentar com aquilo.
Eu respondi que nem sabia se havia bombas de 250 quilos e que a Força Aérea recusaria uma ação dessas. Negativo! E destruir a Assembleia Nacional com o risco inerente, destruição de património e das pessoas que fossem a passar, negativo. No dia 13 de manhã, fui a Santarém tratar do assunto com a Escola Prática de Cavalaria.
Fui a casa do capitão mais antigo, o Salgueiro Maia não estava, estava em trabalhos de campo. Li o papelucho e um capitão pergunta se o papel vinha do nosso general, o Spínola.
Claro que não! Ele responde, nós, Escola Prática, não alinhamos nessa aventura! Fiquei aliviado.
Pedi-lhes para pedir aos paraquedistas, seus vizinhos, se podiam almoçar comigo em Almeirim. Para ver a reação deles. Depois do almoço, estive reunido no meu carro com três paraquedistas e expus a situação. Torceram-se todos. Convoquei-os para uma reunião no Dafundo para decidir, finalmente, se fazíamos ou não alguma coisa. Nessa reunião apareceu um paraquedista, a representar os paras e a Escola Prática de Cavalaria. E ele diz que não entram nisso. Os paras eram uma força disciplinada, de combate, e queriam ordens expressas. Fiquei aliviadíssimo. Os capitães ficaram desanimados e eu disse ao Casanova, nada a fazer. Ele pergunta quantos eram os paraquedistas. O outro diz que são 800 homens, disciplinados e bem municiados, armados e instruídos, com capacidade de combate rápida e obedecendo a uma linha hierárquica. O Casanova diz que com 800 homens fazia-se uma revolução! Eu fiquei com os 800 homens no ouvido e quando me perguntam com quantos homens é possível fazer uma ação digo logo 800!
O Spínola e o Costa Gomes foram exonerados pelo Marcello.
Logo, no dia 15. E saiu no telejornal. Os que tinham entrado no quadro com os decretos estavam pendurados no Spínola e dispostos a tudo para ele não ser exonerado. No dia 15, o Casanova e eu estamos na Academia Militar e vemos o telejornal. Vamos para casa do Monge, um spinolista, em Miraflores, para o animar. E chega um capitão, ex-miliciano, que diz que o Regimento das Caldas está em pé de guerra. E recebemos ainda um telefonema de um capitão, comando de Lamego, amigo do Monge, que diz que vão sair a caminho do Porto. O Monge fica entusiasmadíssimo e tudo o que tinha ficado sem efeito dois dias antes é posto em ação.
Pensei, isto vai ser uma loucura! Um de nós vai às Caldas, o Casanova propõe-se ir a Santarém para trazer uma coluna da Escola Prática eu telefono para Vendas Novas para ver se vem uma bateria de artilharia. E vou a Mafra para ver se trago uma companhia de infantaria. Isto dia 15, sexta, às 9 da noite. Fico com um pressentimento terrível. Vou ter com o Vítor Alves e digo-lhe que vou ser preso, fui arrastado pelo voluntarismo do Casanova. Telefono para Vendas Novas e está de serviço o Duarte Mendes, o cantor, que me diz, meu major, hoje é sábado! Foi tudo de fim de semana. Cheguei a Mafra às 3 da manhã, nevoeiro monstro, está um tipo de capote de sentinela, e dizem-me que não há ninguém, a operação tinha sido cancelada. Às 5 e meia da manhã, estou a chegar a casa do Monge, que tinha como missão ficar em casa agarrado ao telefone para saber das colunas. Vejo um carro parar 50 metros à minha frente. Saem de lá cinco tipos de gabardina e chapéu preto. A PIDE estava no terreno. Nem parei. Arranquei para a Encarnação e pus-me com o carro parado a ver se havia movimentação. Telefono para casa do Monge e a mulher diz-me que a PIDE revistou a casa mas que o marido foi para as Caldas com o Casanova, tentar travar a coluna.
Saíram das Caldas às 4 da manhã, 200 homens, e foram todos presos. Às 7 menos um quarto, vejo formarem-se as forças governamentais, GNR, PSP, os boinas negras da Legião, tipos da PIDE à paisana e com pistola-metralhadora debaixo do braço escondida no jornal… o Batalhão de Caçadores 5, Lanceiros 2, um arraial por causa de uma coluna. E aí tive uma ideia de manobra. Se eu tiver um espaço aberto em Lisboa, amplo, onde ponha uma unidade nossa, de força, espetacular, que domine o espaço, a unidade vai ser o isco para atrair as forças governamentais, libertando-me espaço e tempo para ir ocupando objetivos rentáveis. Fiquei ali e soube que a coluna tinha regressado ao quartel. O circo desfez-se. Claro que houve um alarme no Movimento. Passados uns dias, um capitão do Regimento de Engenharia da Pontinha entra em contacto comigo, num encontro no Parque Eduardo VII, e diz-me, Otelo, tens de tomar conta disto. A malta está desanimada. Eu disse que sim.
Porquê?
A intentona das Caldas tinha falhado. Porque tinha acontecido o que eu queria que acontecesse. Disse para convocar uma reunião para o dia 24. O Vítor Alves diz-me que o Melo Antunes lhe tinha telefonado a dizer que abandonava o Movimento, não alinhava em coisas daquelas, marcámos encontro no Café Londres. Ele diz-me que a colaboração com o Movimento acabou e eu digo-lhe que não acabou e lhe vou explicar o que aconteceu a 16 de março. Garanti-lhe que ia elaborar uma ordem de operações numa operação militar para derrubar o Governo com êxito total. E digo-lhe que precisamos de um programa político que sustente o êxito da operação. Ele diz que não tem tempo para escrever porque vai apanhar o avião para Ponta Delgada, tinha pedido transferência.
Tens três dias para trabalhar. E no dia 22, reunimos em casa do Vítor Alves e ele traz as bases programáticas antes de embarcar. Na madrugada do dia 23, peço ao Melo Antunes que indique alguém na comunicação social com um programa de rádio com potência de antena. E no aeroporto, a despedir-se, aparece o amigo dele, o Álvaro Guerra. Que indica um amigo dele na rádio, o Carlos Albino [Guerreiro].
No dia 24, fiz uma reunião, expliquei o 16 de Março e disse que íamos derrubar o Governo.
E que íamos fazer de conta que o Movimento morreu, até chegar um camarada nosso ao quartel com ordens de atuar. Eu ia elaborar a ordem de operações e dar missões a todas as unidades onde havia pessoal nosso. E quando? Eu disse que, fatalmente, tinha de ser na última semana de abril. Porque durante o mês de abril a PIDE estava entretida a prender e interrogar elementos do PC e do MRPP que andavam por aí a escrever nas paredes O 1º de Maio é Vermelho.
Com essa gente arrecadada por causa do 1º de maio, a PIDE começava a interrogar os nossos camaradas das Caldas presos na Trafaria, a puxar o cordel, e aí alguém vai cantar. E não podia ser a um fim de semana.Quais as prioridades?
Eu queria garantir a neutralidade dos paraquedistas.
Expus o caso ao comandante deles, tenente-coronel Fausto Marques, num passeio de carro pela Marginal. Isto já no dia 21 de abril. Li-lhe a ordem de operações e pedi a opinião dele. Ele disse que aquilo estava muito verde e que os paras tinham de ter ordens definidas.
Perguntou-me se sabia quantas companhias tinham eles e eu não sabia nem queria saber.
Otelo, isso está verde, prepare melhor! À saída do carro, digo-lhe, é esta semana! Só queria a neutralidade. Ele disse-me, ficamos neutrais, nem contra nem a favor. Não se verificou, a 25. A Marinha também estava em neutralidade ativa, que obtive em casa do Vítor Crespo. Manteve.
Escrevi 26 páginas de ordem de operações, dos dois lados da folha A4, e dei missões a todas as unidades onde tínhamos forças, incluindo postos de fronteira. Levei aquilo ao Garcia dos Santos para ele poder fazer o anexo de transmissões.
No dia 22 à noite, obtive a garantia da colaboração do João Paulo Diniz no Rádio Clube Português, a Rádio Renascença estava garantida pelo Carlos Albino, que tinha proposto a ‘Grândola, Vila Morena’. A canção tinha sido cantada no dia 28 ou 29 de março no Coliseu pelo Zeca Afonso na presença dos cantores de intervenção, e não tinha havido ação nenhuma da PIDE ou do capitão Maltez Soares, que estavam presentes. Tinha havido um acordo com a Casa da Imprensa para aquela gala. A canção não estava no índex da Censura. A canção, que passou às 0h20, foi uma senha de confirmação do que já estava em marcha em Lisboa. Dava aos quartéis o sinal de preparação para a saída dos quartéis, que demora. Acordar os soldados, preparar viaturas e munições. O João Paulo Diniz tinha sido primeiro-cabo na Guiné e quando precisei de um locutor no quartel-general do comando-chefe, na ação psicológica, falaram-me nele. Requisitei-o. Na noite de 22 de abril, chamei-o e disse-lhe que ia fazer uma revolução e que ele ia colaborar. Ele ficou em pânico. Disse-lhe para escolher uma canção para entrar às 11h, uma hora antes porque a Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas tinha pedido mais uma hora. Ele escolheu ‘E Depois do Adeus’, do Paulo de Carvalho. Eu concordei, a canção estava na berra.
Otelo Saraiva de Carvalho, “Óscar”. Foto D.R. Rui Ochôa
Quando estava a preparar o golpe como é que comunicava? Como é que nunca foi filado pela PIDE?
Com muita cautela. E isso levou a desconfianças, depois do 16 de Março, quando foram presos o Casanova e o Monge, havia malta que dizia, o Otelo deve ter ligações com a PIDE. Foi uma sorte ter visto os tipos quando eles saíram do carro em frente à casa do Monge. Um minuto depois tinham-me filado. Uma sorte! Para a revolução, o que me valeu foi a confiança grande que os meus camaradas depositaram em mim.
Tive propostas de gente civil, do MRPP, para armarem uma bronca, eu disse negativo. Nunca quis gente civil naquilo, a não ser os que tinham missões militares. Mas houve um militante de partido que avisou o PC. O Carlos Brito uma vez disse-me que o partido sabia que ia haver o golpe. De resto, foi uma surpresa, até para a CIA. E a confiança que depositei nos meus camaradas. Missão cumprida. O Salgueiro Maia, quando lhe dei a missão, avisou-me de que os soldados só tinham uma semana de recruta, não sabiam dar tiros. Disse-lhe, não faz mal, a tua coluna vai ser a coluna isco, traz a maior quantidade de material de combate que puderes, Chaimites, M47, Panhares, MBR, os soldados de capacete, metralhadoras e espingardas automáticas, munições, tudo. Quem vai opor-se a uma coluna dessas? Ninguém sabe que os soldados não sabem disparar. Vais à 2ª Circular, fazes o Campo Grande, Pequeno, Avenida da República, Saldanha, Marquês, Restauradores, Rossio, e montas o arraial todo no Terreiro do Paço. Ficas à espera. Se por acaso estiver o ministro do Exército no gabinete, vais prendê-lo.
E vão lá todos ter contigo, a GNR, a PSP, a PIDE, a Legião, e a Cavalaria 7 e Lanceiros 2, se não apanharmos os oficiais antes.
Arriscado. E corajoso, ser o isco.
O Movimento correu riscos muito grandes. Eu não tinha bem a noção do inimigo, não tinha sido feito nenhum estudo de situação. A GNR tinha acabado de receber 25 viaturas-choque.
Porque é que não reagiram?
O Marcello não era bem um Pinochet. Das escutas que fomos ouvindo, feitas por camaradas nossos no Batalhão de Telegrafistas de Sapadores, houve uma desorientação total. O Marcello ainda deu ordens à Força Aérea para bombardear o Largo do Carmo. Houve um helicóptero armado a sobrevoar mas não fez fogo.
Ao contrário do que tinha combinado comigo, a neutralidade, o comandante de paraquedistas quis salvar o Marcello Caetano. O anexo de transmissões do Garcia dos Santos foi essencial.
Você estava no posto de comando da Pontinha. Nunca lhe passou pela cabeça que aquilo pudesse falhar?
Não! Eu tinha lido antes a ordem de operações ao Garcia dos Santos e ao Hugo dos Santos. O Hugo dos Santos diz-me que está tudo errado, eu devia concentrar operações num espaço que se pudesse defender. O campo de instrução de Santa Margarida. E depois? Depois, exigimos a queda do Governo. Eh, pá, digo eu, não sabes que há um pacto ibérico que podia fazer com que o Marcello, mesmo que a nossa Força Aérea se recusasse a bombardear, usasse aviões espanhóis? E podiam cortar a eletricidade, os abastecimentos, ficávamos sitiados. A ação tinha de ser ofensiva e de surpresa. Eu dava 80% de hipóteses de êxito. E foi assim. O meu problema principal foi a PIDE. Queria evitar o banho de sangue. Não queria que ninguém disparasse, queria efeito psicológico de demonstração de força. Imagine o barulho de um M47 pela cidade fora. Ouvia-se. Objetivos fundamentais eram o quartel-general, o aeroporto e órgãos de comunicação social, a RTP, retirando a possibilidade de criar alarmismo na população.
A que horas é que o Marcello soube que estava apanhado?
Ele sabe que há uma revolução na rua entre as 5 e as 5h30 da madrugada. Sabe pelo diretor da PIDE, o major Silva Pais, que lhe telefona para casa. Ouvimos a escuta. E ouvimos uma conversa, pouco depois das 3 da manhã, entre o ministro da defesa, Silva Cunha, e o ministro do Exército, general Andrade e Silva, que estava a trabalhar no gabinete àquela hora.
Rumores de movimentação.
E o ministro do Exército diz ao outro que está tudo tranquilo, nada, se houvesse qualquer coisa ele sabia. O Silva Pais diz ao Marcello que ele tem de sair de casa, e o Marcello pergunta se vai outra vez para o Monsanto, como no 16 de Março. Eu tinha posto artilharia no alto do Cristo-Rei com objetivos de tiro do Comando da Região Aérea do Monsanto. O Silva Pais diz-lhe que não, Monsanto eles conhecem, o melhor é ir para o comando da GNR no Carmo. Fiquei a saber onde estava o Marcello. Às 5h30, o Salgueiro Maia diz-me, via rádio, que precisa de um oficial superior lá. Porque o ministro do Exército está no gabinete, tudo isto em código. Ótimo, vai prendê-lo. E ele diz-me, não posso, porque o Regulamento de Disciplina Militar diz que um oficial-general só pode ser detido por uma patente mínima de major e eu sou capitão. Que raio, no meio de uma revolução vem-me com isto. Mandei-lhe o tenente-coronel Correia de Campos. O Jaime Neves estava no posto de comando com missões não cumpridas e pediu-me para ir também. Quando lá chegaram, o general Andrade e Silva já se tinha pirado pelo buraco que tinha mandado abrir pela Polícia Militar, que lhe fazia a segurança. Abriram o buraco com as lanças expostas no museu. Piraram-se numa viatura civil para a Calçada da Ajuda, Lanceiros 2. Às 11 da manhã, o Salgueiro Maia pede-me outra missão porque o Terreiro do Paço estava cheio de gente que subia pelos carros de combate, perdia-se controlo. Disse-lhe, Charlie 8 reorganiza a coluna e abandona a missão, sobe ao Carmo e cerca o comando-geral da GNR porque o coelho está na toca. O indicativo do Marcello era Coelho. Com o cerco montado, às 12h30 resolvo fazer um ultimato ao comandante da GNR, Ângelo Ferrari, que tinha sido meu professor na Academia Militar.
Digo-lhe que falo do Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas. Ele chama-me camarada e eu digo não me chame isso porque não somos camaradas. Estamos em trincheiras opostas. Dou-lhe 15 minutos para abrir o portão do
Desliguei e contactei o Salgueiro Maia. Charlie 8, fiz um ultimato. Se não acontecer nada dentro de 15 minutos, preparas as metralhadoras e vais partir dos vidros das janelas do 1º andar.
E o Salgueiro Maia diz-me, isso é despesa, depois quem é que paga isso? Não te preocupes, alguém há de pagar. Passado um quarto de hora, ele hesita ainda. E eu, quero ouvir essa rajada, quero ouvir os vidros a partir, vamos embora! Até que ouvi estralejar, os vidros a partirem. Hoje sei, através de um livro do major Nuno Andrade, oficial da GNR que estava lá, que aquilo foi decisivo para a rendição do Marcello. Antes, já havia uma tensão monstra, com o megafone do Salgueiro Maia e o aparato.
O Marcello telefona para casa do Spínola para se render. Os únicos tiros disparados por nós foram esses. Quando o Spínola me pergunta o que fazer com o Professor Marcello Caetano disse-lhe para combinar com o Salgueiro Maia, tínhamos um Dakota preparado no aeroporto para o levar, com o Tomás, para a Madeira.
E a PIDE?
Tinha previsto duas companhias que falharam. Uma para Caxias para libertar os presos políticos, e outra para a António Maria Cardoso, sede da PIDE. A PIDE ocupa a sede e quando se junta a multidão metralham a população. Fizeram uma batelada de feridos e 4 mortos. Podiam ter sido evitados.
No pós-25 de Abril, Otelo meteu-se em sarilhos, COPCON, FP, acabou preso. Há quem o ache um herói e quem o ache um terrorista. O que é que teria feito diferente?
Há coisas que nunca poderia fazer, por razões de ordem pessoal e de educação familiar. Matar gente.
Há uns anos não era bem assim. Uma vez, fiz-lhe [com o Joaquim Vieira] uma entrevista polémica em que dava a entender que pensava o contrário, o que tivesse de ser teria de ser, mesmo que fizesse vítimas. Eu achei que você era um bocado lunático. Hoje encontro um Otelo diferente, mais sensato.
Não me lembro, lembro-me de ter tido um deslize numa pergunta sua sobre o bebé de São Mansos, que morreu com uma bomba das FP-25. Claro que mudei. Mas continuo a considerar que a revolução portuguesa, apesar dos excessos que foram cometidos por todos, foi um êxito. Houve excessos de todos, também dos partidos. O MRPP praticou torturas dentro de instalações militares. Fugiram ao controlo da malta. Houve torturas no RALIS por elementos do MRPP em serviço militar. No 25 de Abril, os militares procuraram ter um comportamento cavalheiresco. E tiveram. Para o povo, o 25 de Abril foi uma nova vida.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso