Morreste como eu quero morrer: sem envelhecer – estavas inteiro por dentro, esse dentro que anima o nosso fora.
Não vou ao teu enterro porque não estarás lá. Fui acompanhar-te há sete anos quando morreu a tua mulher. Falaste à beira da sua cova da nossa finitude. E, à tua boa maneira, compuseste um poema. No meu Sul natal, antigamente esperava-se que os familiares dos defuntos lhes fizessem um bonito “pranto” durante o velório. Creio que isso era catártico, que ajudava a suportar a dor do desenlace. Ouvi, em Alcoutim, uma mulher gabar-se: “Quando a minha Mãe morreu fiz um pranto que foi gabado por toda a gente!”
Quando, na nossa presença, desfiavas os teus pensamentos, sabias fazê-lo com a emoção e a arte de um bailarino: impossível reproduzir depois em palavras o que tinhas dito. Impossível resumir uma dança, uma música, um poema.
Congresso em que não estivesses não era congresso, eras tu que os abrias e fechavas. Contavas que a tua mulher desaprovava, tu dizias que não podias faltar porque…, ela retorquia que ias porque querias, porque gostavas, e era verdade – e ainda bem! Também contavas que ela te acusava “Não sabes dizer que não nem ao teu cão!”. Mas não era por isso, não, era porque até morreres disseste sempre “sim!” à vida! (É verdade que exageravas: ralhei-te valentemente quando soube que tinhas prefaciado o livro do Sócrates – isto é, por ele assinado: “Que vergonha prefaciar o livro do Sócrates, que nem sequer é dele!”. Defendeste-te, com ar culpado: “E eu sabia? E eu sabia?!)
O que para aí vai de homenagens ao teu nome! O que nos havíamos de rir disso tudo se aqui estivesses! Por mim, já sabes que detesto unanimidades, sobretudo gratuitas. A elogiar-te ninguém se compromete, pelo contrário: faz figura de culto – mas quantos de todos esses te terão lido?! Prefiro falar de ti numa homenagem de terreiro – esta, em que falo de ti, contigo e com alguns amigos.
Depois de falar contigo, vou falar de ti.
Eduardo Lourenço tem vindo, às vezes, a propósito quando conto a minha vida. Existe nela há mais de cinquenta anos, quando nos encontrávamos em Paris – eu, recém-exilada, ele, eterno transeunte, então em trânsito entre Vence e Paris, onde acontecia a cultura portuguesa. A mulher, francesa, teve sempre que o repartir com outras pessoas e lugares.
Encontrávamo-nos, nesses anos sessenta, num cafezinho no Quartier Latin, numa mini-tertúlia com o António José Saraiva e outros exilados. (Ele nunca foi: ao contrário de nós, era hábil a evitar as malhas da PIDE…) Era então autor de um livro só, Heterodoxia – e como esse título era oportuno! Tanto eu como o António José Saraiva torcíamos o nariz ao Neorrealismo, perfilhado pelos da Esquerda ortodoxa. (Pela minha parte, sempre torci o nariz a todos os ismos.) Gostávamos de Agustina, desdenhada pelos neorrealistas, Síbila era do nosso agrado. Dele também.
A principal afinidade entre Eduardo Lourenço e António José Saraiva – eram amigos e estimavam-se mutuamente – era a natural coragem de remar contra a corrente, dizendo coisas impopulares: Saraiva brutalmente, ele à sua maneira um tanto clerical, indirecta, que não levantava suspeitas… Não vou falar nas de Saraiva, conhecidas pelos amigos da sua roda, em Paris – Eduardo Lourenço era um deles – apenas sobrevoar as reveladas pelo livro de E. Lourenço Heterodoxia (de 1949, houve outro em 69) que contestavam não só a ortodoxia marxista dos intelectuais de então, seus amigos, mas também a católica, dos sustentáculos do salazarismo, em que tinha sido educado (a Mãe queria que fosse padre, tem uma irmã freira, e, em novo, era abominavelmente parecido com o Salazar!). É claro que também desagradou profundamente aos da presença, muitos deles seus amigos, ao declarar que essa revista representava “a contra-revolução do Modernismo”.
Na “Grande Entrevista” de há 5 anos, reapresentada agora, desagradou com certeza a muita gente ao comentar, a propósito de agora sermos célebres no mundo apenas graças aos nossos heróis do bolapé, que “cada povo tem os heróis que merece”.
Nesses meados dos anos 60, o Eduardo colaborava num jornal de Coimbra – Notícias de Coimbra – e pediu-me poemas para a sua página literária. Ouvi-o dizer algumas vezes, até em público, que o que ele teria gostado era de ser poeta. Fez poemas na sua juventude, mas depois deixou-se disso. Algumas vezes lhe disse, depois de me regalar a ouvi-lo, nas suas palestras: “Ah, ganda poeta!” porque era isso que me agradava na sua expressão. Depois de o ouvir, tentava resumir de cabeça o que ele tinha dito, e não conseguia. Ele encantava-nos com a sua fala que era impossível resumir. Roland Barthes disse, nesses tempos remotos da minha juventude exilada em que o lia e ouvia – até nos Hautes Études (era, como, Lourenço, um “charmeur”) – que a poesia se não pode resumir. E é verdade.
Creio que o Eduardo Lourenço nunca gostou especialmente de investigar. Não, não tinha “assento” para ser um investigador a valer: sempre o conheci a borboletear de um lado para o outro – o que enfurecia a mulher e, provavelmente, o arredava ainda mais do lar… Lembro-me que até foi embaixador ou adido cultural em Roma. O seu Pessoa é o que a editora Ática revelou, nem sequer um vigésimo da obra. É claro que nunca teria pachorra para visitar o espólio, há muito público. Estou convencida que nem lia os meus livros, esses que tentavam revelar um “Pessoa por Conhecer”. Ofereci-lhe alguns, depois deixei-me disso. Não tinha vagar, andava sempre de palestra em palestra, de congresso em congresso, de prefácio em prefácio. Estou a ser injusta: leu, sim senhor, o meu primeiro “pavé” sobre o Pessoa, editado pela Gulbenkian em 1976, disse que um livro como aquele só acontecia de muitos em muitos anos… Claro que gostei que mo dissesse porque percebi que era sentido. Mas duvido que tivesse lido os que se lhe seguiram, sobretudo os textos pessoanos que me tenho afadigado a dar a conhecer para corrigir as desfigurações da Edição Crítica e dos novos pessoanos, seus continuadores.
Esteve longamente matriculado para fazer um “Doctorat d’État”, para ter direito a um lugar efectivo de Prof., na Universidade de Nice, em que lecionou, mas nunca defendeu essa tese que, imagino, nunca chegou a escrever. Teve um director de tese e tudo, o Prof. Lawton, que conheci mas que naturalmente não teria coragem de lhe pedir contas do adiantamento do trabalho… Nunca se instalou, por isso, na carreira: os franceses fazem total questão dessa tese e desse título.
Tínhamos a impressão que residia em Paris porque estava lá sempre connosco, a pretexto de reuniões, congressos, sessões de todas as qualidades e feitios em que nós, os exilados, éramos férteis – nomeadamente a chamada “Liga do Ensino”, filial portuguesa da “Ligue pour l’Enseignement Laique”, de que eu, a Maria Lamas e o António José Saraiva éramos dirigentes. Lembro-me da sua presença entusiasta nessas sessões.
Assistir a essa “Grande Entrevista” de há cinco anos, que não conhecia, agora de novo apresentada, foi um grande prazer. Era sempre maior, confesso, que o de o ler. Surpreendeu-me que respondesse que o maior prazer da sua vida foi o de ter encontrado a sua mulher. Com manifesta má-consciência, lamentou nunca ter sido o que ela esperava dele. Conheci-os juntos: às vezes, a tensão entre o par despedia faíscas: ela era uma perfeita francesa cartesiana, professora universitária de Literatura Espanhola, na Universidade de Nice, em que o pai era Director e Eduardo Lourenço professor. Era-lhe muito dedicada, sem dúvida, até lhe traduzia os livros para francês. Contou-me, com essa sua rara qualidade de se rir de si próprio, que ela se impacientava no meio do emaranhado do seu discurso, e lhe perguntava: “Mais où est le sujet?” (Onde está o sujeito?)
Comportava-se, na ausência dela, como um menino rebelde. Numa das suas constantes passagens por Paris, no intervalo para almoço de algum congresso, coincidimos à mesa de um restaurante. Encomendou o prato mais pesado da ementa, com choucroute, salsichas e não sei que mais. E já nessa altura os médicos lhe prescreviam dietas. Ralhei-lhe: “Porque é que pediu essa comezaina? Isso nem sequer é bom!”. Pensou, e respondeu-me: “Acho que só porque a minha mulher não está aqui para me impedir!”
Viveu sempre “le cul entre deux chaises” – nome de um grupo de teatro de jovens franceses filhos de emigrantes portugueses de que me lembro, não sei se ainda existe. Passou a maior parte da sua vida em França mas, como alguns peixes que emigram, voltou à pedra natal para desovar e morrer.
O Eduardo Lourenço adorava rir, como eu adoro (tive que escrever o verbo no indicativo, para me não sentir póstuma). Quando aqui coincidimos em evocações públicas de amigos comuns (Urbano Tavares Rodrigues, António José Saraiva) pusemos toda a gente a rir, a começar por nós – nos espaços solenes da Biblioteca Nacional e da Faculdade de Letras, respectivamente. Mas com um rir parecido: não nos ríamos deles, dos evocados, gostávamos de os trazer para esses domínios da infância em que ambos ainda gostávamos de brincar e o riso acontecia, como um cântico. Elogiava então a minha vocação para actriz (que recusava e recuso: apenas para escrever teatro, não para o representar).
Eduardo Lourenço gostava de me divertir evocando-se em cenas chaplinescas: ao tomar um táxi perto do hospital Júlio de Matos, o motorista, atentando no seu ar despassarado, imaginou-o evadido de lá e perguntou-lhe: “Tens dinheiro?” e exigiu-lhe “Mostra lá!”! Descreveu-se-me também ao volante do seu carro, a esmurrá-lo e a pôr em perigo a circulação: “Ao volante sou um perigo público!”
Creio que o que o fez viver tanto tempo foi essa sua vocação para a alegria. Apesar de diabético não assumido: sempre o vi comer sobremesas açucaradas nos almoços que compartilhámos. Desmaiou uma vez na Academia das Ciências, por hipoglicémia. Creio que não levava a doença a sério. Tinha o ar de não levar nada na vida demasiado a sério – sobretudo esses anseios do baixo quotidiano a que as pessoas se acorrentam. Gostava de não ter poiso fixo, de esvoaçar de galho em galho. Uma vez respondeu a um entrevistador: “O que eu gostava era de voar!”
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de janeiro)