Pede-me migigingues (amendoins) e que me sente no sofá; deita-se pousando a cabecita no meu colo, e enrolando no dedito os largos caracóis, vai desfolhando a longa família. Tem apenas por essa altura, dois anos e meio de idade; sente que o amam. As disputas travadas entre os seus entes queridos, pelo maior espaço no seu coraçãozinho; a constante pergunta feita pelos muitos membros da família “de quem gostas mais”; o desejo de corresponder ao amor de cada um; a busca de uma resposta que possa alimentar o lugar que tem em suas vidas; os motivos das suas ausências apesar do amor que não duvida, confundem-lhe os tenros pensamentos.
– Teresa, a mamã foi trabalhar?
– Sim Bruno, a mamã foi trabalhar.
– E o Caco (padrasto) foi trabalhar?
– Sim, também foi trabalhar, meu querido.
E a avó e o avô, e a outra avó e o outro avô e ainda os outros avós ( alguns deles divorciados e esses, com outros casamentos)… e o Papá……
– Tu não vais trabalhar, Teresa? Ficas a cuidar de mim, dos meninos? Nunca vás trabalhar, por favor, nunca vás!
Prometo-lhe que nunca o abandonarei; que sempre estarei ali nas ausências daqueles a quem tanto ama, que tanto o amam, e sossega. Pede-me mais migigingues e assim seguro, salta feliz do meu colo e vai brincar, enquanto o Gonçalo indiferente ao que se passa à sua volta e aos afetos ausentes, em vez de migigingues devora livros: histórias que de tanto ouvidas, as vai contando só para ele, num tom sumido.
Mas nos largos momentos em que o Bruno se assegurava no meu colo, enquanto os pensamentos lhe empurravam as palavras e lhe abrandava o circular do dedito à volta dos cachos de caracóis, a minha memória acelerava e corria veloz pela vida, por cada curva, por cada pergunta que me ficou encarcerada, por cada medo de abandono, por cada dúvida que me perdurou até àquela partilha de momentos.
E foi do meu colo que parti; do meu lar partilhado com meninos. Foi de lá que segui a direção dos seus olhos e fui parar aos colos onde demoradamente me acolhi nas esperas, segura sem saber, sonhando colos onde nunca descansei, que nunca alcancei. Colos que se tornariam a minha mais vasta realidade, tantas vezes a mais feliz; tantas quantas as realizações de sonhos que o futuro me acabaria por quebrar.
E dessa palavra nascida da inocência, é de onde agora parto, com a certeza que sempre encontrarei outros meninos, outros, outros lugares onde descansar nas esperas, onde me abastecer de paz, de serenidade para usar nos caminhos, sem os grandes medos das grandes duvidas; com a certeza de que tudo tem um fim, que chegará, e um princípio também.
E sempre que a vida não me pede pressa, é para lá que me dirijo, para esse lugar a que o Bruno deu o nome Migigingues. Lá colocou um marco visível de onde quer que eu esteja, de onde avisto todos os marcos do passado, com palavras novas indicando os marcos do futuro. Lá, onde aprendi a soletrar a vida sem medo de errar, e mesmo quando tropeço em amontoados de palavras velhas, gastas de tantas vezes usadas e me parece ter caído na vida, sempre encontro quem me injete força para me erguer, e reparo, que não estava por terra, mas no chão. E que é no chão que tudo se constrói… e reconstrói.
E apesar das muitas vezes que as palavras me parecem erradas na existência da altura, sempre volto a acreditar que as palavras ouvidas me podem mudar a visão que tenho dos caminhos, e que os caminhos me podem mudar as palavras.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de setembro)