Marco Mackaaij nasceu nos Países Baixos em 1970 e vive em Portugal desde 1995. É professor de Matemática na Universidade do Algarve e caloiro de poesia fora da academia. Alguns poemas seus estão publicados em revistas literárias e antologias. Em Março de 2015, a editora CanalSonora (Tavira) publicou o seu primeiro livro de poesia E se não for?. Recentemente também publicou uma pequena mostra de poemas novos, a plaqueta Perdidos e Achados (Nov. 2017).
Como surge a poesia em ti, nos teus dias, como se mistura com o teu dia-a-dia; onde, como, quando, escreves. Tens vícios, manias de escrita…
Não costumo ter ataques de poesia nos sítios apropriados: em frente ao mar (almejando lá voltar depois das marés da morte), em cima de cordilheiras líricas (para ser mais alto), em camas ofegantes de cortesãs com línguas de mel e corações de pedra, em gaiolas intelectuais para rouxinóis urbano-depressivos, ou em becos malditos, mal iluminados e altamente recomendáveis para jovens poetas de boas famílias em decadência.
As ideias menos banais assaltam-me na cozinha, a descascar batatas ou a arrumar loiça, ou algures num sítio surpreendente entre o leite do dia e as pizzas congeladas do Continente. Tudo muito pouco adequado, mesmo para a carreira de um poeta menor, sem tempo para grandes epifanias. Enfim, as ideias que sobrevivem até ao silêncio crítico da madrugada seguinte, sozinhas e abandonadas, sem pingo de poesia, no subconsciente reservado para o efeito, entrego-as aos dedos e à sabedoria do teclado.
Aí sim, convém surgir algo, sabe-se lá o quê, de onde, quando e porquê. Simplesmente: Algo. Como sabem os que já o procuraram pela própria mão e fracassaram melhor ou pior, este algo é raro. Tão raro que por vezes me pergunto se existe mesmo (ai memória!, porque é que nunca me ofereces referências exactas, apenas farrapos de citações?). Poderão ser poucos, os meus poemas que revelam a possibilidade dessa existência, mas não desisto da procura. Procuro sempre. Sempre algures entre a térrea realidade das batatas, o materno leite do dia e o rigor mortis das pizzas, com uma pequena paragem em frente aos líricos lombos de bacalhau da Pescanova, para ver se estão com desconto.
E quanto a autores que lês, ou leste, que te possam ter inspirado, e os que admiras…
Sou mais um glutão de amuses-bouche do que um rapa-tachos de obras completas. E o que já está feito magistralmente, é melhor não imitar demasiado: epígonos não costumam ser tidos em boa conta.
Contactei primeiro com as poesias holandesa, greco-latina e anglo-saxónica. Metade da poesia que leio hoje em dia continua a ser holandesa, mas vou restringir-me aqui à poesia de língua portuguesa.
Li primeiro Camões, cantigas disto e daquilo e deste e daquele do Cancioneiro Geral, Florbela Espanca, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Mais tarde, mergulhei no Cancioneiro Actual, i.e. uns poucos poetas do século dezanove (a partir de Cesário Verde) e, principalmente, um número razoável de poetas do século vinte (um Século de Ouro, segundo o título de uma antologia).
Desde que comecei a escrever poesia, um desvario muito mais recente, comecei a ler e a estudar mais especificamente poetas com que sinto alguma afinidade escritora (em vez de apenas afinidade leitora, que é sempre mais abrangente, julgo eu): Adília Lopes, António Manuel Pires Cabral, Jorge Sousa Braga, João Luís Barreto Guimarães, José Miguel Silva e Bénédicte Houart, para mencionar apenas alguns poetas vivos de quem li mais do que um livro.
Em geral procuro ritmo, musicalidade, imagens surpreendentes, uma luz nova sobre um tema conhecido, os pés firmes na realidade (em todas as suas facetas, sem tabus nem hierarquias), com pitadas de humor / ironia / cinismo e / ou absurdismo / surrealismo, e algumas palavras, ou versos inteiros de preferência, a brilhar como estrelas ou como facas e cutelos. Fujo de versos maquilhados de verdadeira Poesia como quem foge do verdadeiro Amor de uma velha prostituta. Sou tão metafísico como um cão a cagar (fazendo minhas as palavras do poeta neerlandês Gerrit Kouwenaar), embora por vezes goste de tomar Tolentino Mendonça com café no domingo de manhã. Odeio quando o nariz de Pinóquio cresce demasiado: poesia sobre poesia sobre poesia sobre poesia etc., ad nauseam. De resto, estou aberto a todo o tipo de poemas, desde que me causem uma impressão minimamente duradoura. Adoro poetas menores nos seus poemas mais inspirados, os incontornáveis, contorno sem escrúpulos quando me aborrecem.
Que livros estás a ler? Poesia ou outros géneros? Queres comentar sobre eles?
Nos últimos tempos: Keeping an eye open de Julian Barnes, uma compilação de ensaios sobre arte (principalmente pintura). Gosto muito de ver obras de arte e ler sobre arte (i.e. artes plásticas). Sofia queria voltar, depois da morte, para que lhe fossem devolvidos os anos que não viveu junto ao mar. Eu gostaria de voltar para que me fossem devolvidos estes anos que vivo longe de museus de arte.
The dream of enlightenment de Anthony Gottlieb. O subtítulo diz tudo: The rise of modern philosophy. Como matemático tenho uma dose saudável de cepticismo relativamente à filosofia: falta o rigor clínico e factual nos conceitos e nos argumentos que hoje em dia são a norma na ciência e na matemática. Por outro lado, a filosofia moderna (junto com a ciência, obviamente), digamos desde Descartes, teve uma influência tremenda na maneira como vemos actualmente o mundo, o universo e o nosso lugar nele como seres humanos. Enfim, leitura obrigatória para qualquer intelectual, mesmo que seja um simples matemático.
Toen met een lijst van nu de Thomas Eyskens. Comecei a ler ontem no avião. Trata-se de uma biografia do jornalista, ensaísta e poeta flamengo Herman de Coninck, que morreu de uma paragem cardíaca em Lisboa em 1997, quando ia a caminho da Gulbenkian para participar num encontro de escritores portugueses e neerlandeses. De Coninck era um poeta autobiográfico. Sabemos que, em troca de mais autenticidade, mais vida, menos literatura sobre literatura, menos arte por arte etc., a carga autobiográfica pode limitar a universalidade de uma obra. Ou não: quando li os seus poemas, nunca senti falta de mais informação biográfica. Pareceram-me sempre claros, lindos e bastante universais para homens neerlandeses (e flamengos, pelos vistos) da segunda metade do século vinte. Veremos se continuo da mesma opinião depois de ler esta biografia.
Poesia: Manual de Prestidigitação de Mário Cesariny, Mike Tyson para Principiantes de Rui Costa, Nadar na Piscina dos Pequenos de Golgona Anghel, New and Selected Poems de Charles Simic e alguns livros de poesia neerlandesa.
Dilatação do Tempo
para a Zé
Acumulamos aniversários
comemorando o progresso do passado,
mas como medir o amor?
Reza a Lei da Relatividade que
astronautas em viagem a Vénus
se manteriam jovens do ponto de vista
de um observador que envelhecesse
com os pés inertes na Terra.
Para eles a diferença é nula:
estria por estria, ruga por ruga
(qual Lei de Talião) afeiam juntos
entre corpos celestes.
Mas quando a base os chama (e chama
sempre enquanto durar) parece
que enganam bem o terráqueo tempo.
Que mais podem desejar?
(Artigo publicado na edição papel do Caderno Cultura.Sul de Novembro)