Um Tambor Diferente, de William Melvin Kelley («o gigante esquecido da literatura americana»), a ser traduzido e reeditado um pouco por todo o mundo, foi editado pela Quetzal Editores em Portugal, com tradução e prefácio de Salvato Teles de Menezes. É o primeiro romance deste escritor afroamericano, publicado em 1962 quando William Melvin Kelley tinha apenas cerca de 23 anos, e que o equiparou a autores como Faulkner. Esse é outro dos aspectos curiosos do livro, cuja publicação original remonta há sessenta anos: não só a temática é claramente actual e oportuna, como a prosa ágil e envolvente tem um toque moderno e original. Thomas Merton afirmou: «é mais do que um brilhante primeiro romance de um jovem escritor negro. Trata-se de uma parábola que estuda algumas das profundas implicações espirituais da luta dos negros por direitos civis completos e por um estatuto humano integral no mundo de hoje».
O livro inicia quando tudo já terminou, para depois nos conduzir a um passado em que uma história pode ter forjado uma lenda, no instante em que um negro desembarca de um navio de escravos. Dewitt Willson que tinha ido tão somente esperar um relógio que vinha da Europa, apesar de se saber que dá azar transportar objectos em navios negreiros, fica obcecado quando vê o Africano, um negro possante como Sansão, cujos bramidos conseguem expandir os costados do navio. Willson compra o Africano por mil dólares mas este consegue fugir, com um bebé debaixo do braço, tornando-se o protector de outros escravos. Mas Dewitt Willson não descansará enquanto não o capturar.
Gerações depois, os habitantes de Sutton assistem à chegada de um camião que transporta sal para a casa de Tucker Caliban, descendente do Africano. Depois de salgar a terra e destruir um relógio, Tucker deita fogo à sua propriedade e parte com a mulher. Sucede-se, seguidamente, que todos os negros de Sutton, num êxodo massivo, começam a partir em autocarros, comboios e carros.
Todos estes acontecimentos, aparentemente desconexos, são narrados numa certa inversão cronológica, através da perspectiva de diversas personagens – homem, mulher, criança –, todas elas brancas. Entre a tensão dialógica das várias vozes que nos dão conta da intriga, destaca-se o ponto de vista de uma criança, o Senhor Leland, que se torna fundamental para a narrativa.
O ano ainda agora começou mas talvez não se peque por excesso ao afirmar que este é provavelmente um dos grandes livros deste ano. Não por aquilo que se escreveu já sobre o livro, e que pode ser lido na sinopse e comentários, mas pela sensação que se tem logo ao começar o livro: o maravilhamento de uma história de outros tempos que se torna lenda, a elegância da prosa, a trama bem urdida em que se revelam estranhos fenómenos que só gradualmente iremos compreendendo como se encadeiam.