Segunda Casa, de Rachel Cusk, publicado pela Relógio d’Água, com tradução de Sara Serras Pereira, integrou a lista de finalistas do Booker Prize de 2021. Da mesma autora, a trilogia Outline, completada em 2018, publicada entre nós pela Quetzal – A Contraluz (2017) e Trânsito (2018) –, sendo o terceiro e último volume, Kudos (2019), publicado pela Relógio d’Água, representam um novo dispositivo narrativo criado por Cusk, inédito na ficção em geral, em que protagonista e narradora se esbatem até ser pouco mais do que um contorno a contraluz, quase como se não houvesse uma intriga propriamente dita, mas sim o desfilar de uma câmara documental. Segunda Casa (Second Place no original) é um regresso da autora ao romance, e também a um registo mais convencionalmente narrativo.
Uma mulher, a narradora, convida um prestigiado pintor para passar uma temporada com ela e a sua família. A narradora nunca é identificada, ainda que fiquemos a saber que é escritora, e a narrativa, passada nos nossos dias (já depois do deflagrar da pandemia) afigura-se como uma longa missiva que tem Jeffers como destinatário, ou narratário. É a Jeffers que a narradora descreve como em tempos ela e Tony, o seu parceiro, comprou um terreno baldio contíguo ao seu «para impedir que fosse mal usado» (p. 20) onde construíram uma segunda casa.
Essa segunda casa num paul tornou-se com o tempo o refúgio de uma série de artistas convidados expressamente pelo casal. Numa certa manhã em Paris, numa galeria, a narradora descobre um quadro de L, e apesar de nunca ter ouvido falar do artista, fica profundamente impressionada pelo seu marcante auto-retrato, em que «ele se coloca a si própria mais ou menos à mesma distância que mantemos de um estranho» (p. 14).
Da mesma forma que o artista no auto-retrato parece até surpreendido com a sua própria existência, deitando sobre si mesmo um olhar penetrantemente objectivo, a narradora sente então uma súbita pena de si própria, tornando-se simultaneamente independente, deixando de estar imersa na sua história de vida. Pouco depois, escreverá a L a convidá-lo a ir até a esse lugar sagrado de criação, e depois de uma série de peripécias, L acaba por chegar, mas nem tudo corre como ela desejaria.
Este é um romance profundamente inteligente sobre o sentido de propriedade (e talvez daí a centralidade do espaço-casa) na arte e, sobretudo, nas relações amorosas, entre homem-mulher, e humanas, entre mãe-filha, entre artista e musa, entre inspiração vs. objeto retratado. Da mesma forma que, para a narradora, a pintura, e outras criações (não feitas de palavras), «possuem uma propriedade capaz de nos dar algum alívio», pois são também uma segunda casa, «um lugar, um poiso que podemos ocupar quando o espaço restante foi ocupado pelas críticas» (p. 15), também esta narrativa, diz-nos a narradora, é um edifício, construído com palavras, «feito do tempo que passei com L» (p. 107), tempo esse que não correu como ela esperava, até porque as almas dos artistas são pouco atreitas a deixarem-se dominar por patronos e anfitriões.
Rachel Cusk é autora de vários trabalhos de ficção e não ficção. Recebeu uma bolsa Guggenheim. Vive em Paris.