Recordações do Futuro, de Siri Hustvedt, publicado pela Dom Quixote recentemente e com tradução de Tânia Ganho é um livro curioso, para não dizer genial, a vários níveis. É antes de mais um «retrato da artista enquanto jovem», pois a intriga principal centra-se em S. H., uma jovem que, aos 23 anos, recebeu uma bolsa para estudar Literatura Comparada na Universidade de Columbia mas pede adiamento por um ano. Com uma licenciatura em Filosofia e Literatura, 5 mil dólares no banco, uma máquina de escrever e um trem de cozinha troca o Minnesota pela Nova Iorque de 1978, uma cidade muito diferente da de hoje, onde continua a viver, nos «Estados Unidos das Armas», país na «era do ódio» governado por um «homem poderoso a gritar obscenidades sobre os muçulmanos, os negros, os imigrantes, as mulheres perante grandes multidões de adoradores brancos» (p. 330).
A solidão e a fome, ao ponto de vasculhar o lixo, não demovem a jovem de manter os seus principais intuitos: encontrar o herói do seu primeiro romance; «assimilar e emular para os meus próprios fins artísticos» (p. 11) o espírito rebelde da cidade vibrante, cacofónica, sobrepovoada em todas as línguas, que apenas conhecia dos filmes e livros; e «encher a cabeça com a sabedoria e a arte de todos os tempos» para, livro a livro, se transformar num gigante literário (p. 17). Mas S. H. cedo compreende que a arte responde a impulsos próprios, e não a uma técnica ou à autoridade da autora, como sucede ao ficar obcecada pela voz da vizinha do apartamento ao lado, com os seus monólogos bizarros, ou quando compreende que o herói do seu primeiro livro, Ian Feathers (IF = SE), um aspirante a Sherlock Holmes, se silencia e dá lugar à sua jovem amiga Isadora Simon (IS = É).
Com uma voz narrativa marcadamente feminin(ist)a, este romance construído em palimpsesto, complexamente simples, de leitura compulsiva, é construído sobre camadas, conforme, aos 61 anos, a «velha narradora», agora (em 2017) uma reputada escritora, relembra a jovem de há 4 décadas, enquanto simultaneamente nos apresenta excertos do seu velho diário, inclusive com ilustrações da própria autora, contrapostos com os primeiros capítulos do seu romance inacabado. Escusado fazer notar que embora a conheçamos apenas como S. H., estas iniciais são as da autora Siri Hustvedt, mas também as de Sherlock Holmes – o herói-modelo do protagonista do tal romance abandonado –, remetendo o leitor para um jogo de espelhos (ou de fechaduras e chaves) que cruza realidade e recriação, memória e ficção, recordações e fantasmas, bruxaria e arte.