Olhar para trás, de Juan Gabriel Vásquez, publicado pela Alfaguara, com tradução do poeta Vasco Gato, é a comprovação de que o romance latino-americano não perdeu fôlego, sendo Vásquez um dos escritores latino-americanos mais aclamados da contemporaneidade.
Em Outubro de 2016, o realizador de cinema colombiano Sergio Cabrera estava há 3 dias em Lisboa com a sua mulher, portuguesa, e preparava-se para viajar para Barcelona, como convidado de uma retrospectiva dos seus filmes ao longo de vários dias, quando o seu mundo desabada, ao saber que do outro lado do oceano, o seu pai, Fausto Cabrera, acaba de falecer. Fausto morreu tal como viveu: de pé.
O realizador decide manter os seus compromissos, até porque é acto público de celebração difícil de adiar ou cancelar. Parte para Barcelona, onde a acompanhar essa retrospectiva numa cronologia invertida dos seus filmes, justamente do mais recente para o mais antigo, acaba por olhar para trás também sobre a sua própria vida. Sergio tem 66 anos, 3 casamentos e 4 filhos. Ateu. Nasceu em Medellín, viveu na China e trabalhou em Espanha. O seu actual casamento está em crise. E, sobre tudo isso, o seu país recusou um acordo de paz que permitiria pôr fim a mais de cinquenta anos de guerra.
A partir da perda e do luto, mesclado com o seu reencontro com o filho Raúl, que vai ter com o pai a Barcelona, o romance lança-se numa viagem do tempo, quando Fausto Cabrera tinha 13 anos e vivia justamente ali, em Barcelona, como se fosse a cidade que num passe de mágica provoca a viagem ao passado. Da guerra civil espanhola ao exílio da família de Fausto na América Latina, da Revolução Cultural na China aos movimentos armados dos anos sessenta, em que Sergio foi um guerrilheiro perdido na selva, em guerras clandestinas onde a própria identidade e os laços de família deveriam ser dissimulada, este romance, baseado em factos reais, é também uma fantástica retrospectiva sobre o século XX, também tocada pelo desencanto de uma família em que todos (pai, mãe, filho e filha) serviram o ideal comunista, cada um à sua maneira.
«Quanto esforço físico, pensou, quanta obstinação mental, quanta disciplina e quanta vocação e quantos sacrifícios para fazer parte dessa missão maravilhosa: fazer a revolução, trazer o homem novo, trocar este mundo por um em que as pessoas sofressem menos ou onde ninguém sofresse. E agora estava ali: a fugir de tudo isso com a única ansiedade de não ser capturado.» (p. 444)
Apesar de ter vivido na China, formado na doutrina maoísta revolucionária, os outros guerrilheiros têm sempre dificuldade em considerar Sergio, então com dezenove anos, como um deles; esse jovem louro, branco, de olhos verdes, nitidamente um membro da elite de Bogotá, que se passeou pela Europa, «capaz de falar em espanhol, francês e chinês de literatura russa, ópera italiana e cinema japonês» (p. 331).
Conforme se anuncia nas primeiras palavras do romance, «Segundo me contou o próprio» (p. 15), esta é uma narrativa baseada em factos verídicos, pois a experiência de Sergio e da sua família foi sendo revelada ao autor «ao longo de sete anos de encontros e mais de trinta horas de conversas gravadas» (p. 487). Juan Gabriel Vásquez trabalha esta matéria de forma magistral e oferece-nos um romance arrebatador, onde se sobrepõe a «interpretação» do romancista (p. 489).
Juan Gabriel Vásquez nasceu em Bogotá, Colômbia, em 1973. Estudou Literatura na Sorbonne em Paris e viveu em Barcelona por mais de uma década. É autor dos romances Os informadores, As reputações, O barulho das coisas ao cair (reeditado mais recentemente) e A forma das ruínas (Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes d’Escritas; finalista do Man Booker International Prize).