A decisão tomada na Primavera de escrever sobre coisas brancas. Uma lista em que a cada item há um estremecimento de decisão. A percepção de como a escrita pode ser regeneração. Reencontrar a brancura das palavras no branco da página escrita. Ouvir o silêncio. Descobrir o sentido das palavras. Despertar memórias tão antigas que parecem esquecidas numa cidade estranha. Mergulhar no passado para voltar à vida. Ressurgir do nevoeiro.
A autora narra na primeira pessoa como chegou a uma cidade estranha e procura um apartamento, sendo que a primeira coisa a fazer é comprar uma lata de tinta e pintar de branco a porta. Ao andar pela rua, onde todas as palavras são estranhas, e os fragmentos de conversas incompreensíveis, a autora encontra no isolamento «fragmentos inesperados de recordações» (p. 23), tão opressivos quanto a urgência em grafá-los no papel.
A «Cidade Branca» é indiciada, mas nunca designada. Mas para quem lá viveu (como é o meu caso) ou para quem conhece a história, facilmente encontra a resposta unindo as várias pistas: 95% da cidade dizimada em seis meses, a partir de Outubro de 1944; a ilusão de uma cidade coberta por um manto branco de neve ou gelo numas filmagens, quando na verdade a cidade está reduzida a cinza; nada existe há mais de 70 anos, e tudo o que foi erigido é uma reconstrução a partir de imagens, fotografias, mapas.
Mas o fantasma branco que reemerge do nevoeiro e conduz verdadeiramente a narrativa é a sua irmã, o primeiro bebé que a mãe teve e que apenas viveu duas horas. A criança cuja sobrevivência poderia significar a não-existência da autora. E é em torno do luto dessa irmã nunca conhecida, «uma menina com um rosto tão branco como um bolo de arroz em forma de meia-lua» (p. 19), que a autora une os vários símbolos da narrativa, quase todos ligados à morte (e por conseguinte à vida): a neve; o recém-nascido branco (e o branco é aqui não só a pureza mas a ausência de cor de uma morte definitiva) envolto em panos brancos; o leite materno que a mãe expulsará do peito; ossos desfeitos em pó; magnólias que significam revivificação (as flores brancas são a morte ou a vida?); cubos de açúcar; um grou; estrelas; nuvens; nevoeiro; fantasmas; a Lua; os primeiros dentes de um bebé; arroz branco cozido e que representa uma oferenda; um sudário branco; vestes brancas de luto queimadas e dissipadas em fumo branco; papel branco…
Han Kang nasceu na Coreia do Sul e venceu o Prémio Man Booker International em 2016 com A Vegetariana. Depois de Atos Humanos este é o terceiro livro da autora publicado entre nós pela Dom Quixote, e resulta de uma residência literária em Varsóvia.
Um livro experimental, parcialmente autobiográfico, poético, em jeito de glossário, de pensamentos soltos sobre a vida, a morte, a beleza. Uma nota final para a própria capa do livro, belíssima, inevitavelmente branca, com letras prateadas, e um marcador a preto e branco…
(CM)