Depois da originalidade e sucesso do seu romance de estreia é quase sempre difícil a um autor voltar a uma história tão poderosa e arrebatadora quanto a sua primeira. O Golfinho, o mais recente livro de Mark Haddon, autor de O Estranho Caso do Cão Morto (2003), com uma límpida tradução de Francisco Agarez e publicado pela Porto Editora, é um belo exemplo de arrebatadora e pujante prosa.
Viktor, Rudy e Maja, uma jovem mulher de beleza deslumbrante, actriz de televisão e gravidíssima, embarcam num pequeno avião. Duas horas depois, estão os três mortos e a criança que estava no ventre de Maja será a única sobrevivente desse desastre aéreo. E não, esta não é uma sinopse de todo o livro, pois ainda nem chegámos ao fim do primeiro capítulo.
A prosa de Mark Haddon é absolutamente deslumbrante e envolve-nos numa história que encanta como as de antigamente, até porque a intriga se distende numa ténue linha entre a efabulação própria das histórias de fantasia e o real. Quando a cabeça de Viktor, o piloto, acaba decepada na queda do avião e enterrada num lameiro nas proximidades, é difícil não interpretar esse evento como um castigo divino pela sua irresponsabilidade e distracção, perturbado pela beleza de Maja, que seguia consigo no avião. Ou quando Angelica, a menina com nome de contos de fadas que sobrevive, é criada pelo pai extremamente rico numa complexa e sofisticada clausura, no que hoje equivale a uma torre de marfim, sendo o pai o dragão que a guarda. Ou quando o jovem impante Darius tenta salvar Angelica, não será mera coincidência que surja num BMW série 3 branco.
Em suma, cada evento, por muito ordinário que se afigure, está sempre eivado de alguma simbologia, ou talvez seja a imaginação fértil de um leitor, estimulada por livros como este, a conferir-lhes esse sentido adicional, da mesma forma que Angelica é uma leitora ávida de mitologia. Mas a partir do terceiro capítulo, epónimo do livro, esta narrativa tira-nos por completo o tapete e leva-nos para novos mares, conforme parece dar lugar a uma outra história, em tempos míticos, com Péricles, príncipe de Tiro, a bordo do navio Golfinho, ou ainda quando nos leva, mais à frente, para a Londres dos tempos de Shakespeare.
O poder encantatório da efabulação, das possibilidades da ficção, os ecos da mitologia e o simples e velho prazer de contar e ouvir uma história tomam o leme e conduzem o leitor para águas cada vez mais profundas, onde se redescobre o prazer de ler, de ser completamente mergulhado numa história ao ponto de sairmos dela transformados. Pois, tal como cada uma destas personagens traz em si uma história (por vezes mais do que uma) – histórias que podem aliás revelar a sua verdadeira identidade –, também o leitor irá construir a sua própria história a partir deste vórtice de imaginação que comprova como as histórias mais antigas se podem renovar até ao fim dos tempos.