Fernão de Magalhães – O Homem que se Transformou em Planeta, uma edição da Imprensa Nacional Casa da Moeda, com texto de Luís Almeida Martins e ilustrações de António Jorge Gonçalves, assinala a comemoração dos 500 anos da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães.
Para contornar o problema de ter de escrever sobre uma personagem histórica de há 5 séculos, o autor-narrador contorna o problema, evocando o fantasma de Fernão de Magalhães ou o espectro da sua memória para contar, na primeira pessoa, como se tornou no português mais famoso de todos os tempos, neste planeta e noutras esferas vizinhas: «Tão famoso, tão famoso, que o seu nome foi dado a uma galáxia, a uma sonda espacial, a um sistema de GPS, a um modelo de computador, a uma grande cratera de Marte, a um estreito entre dois oceanos, a uma baía, a navios e a aviões da realidade e da ficção»… Deu nome também a uma nave espacial. E ganhou novas vidas como protagonista de jogos de computador.
Da mesma forma que na sua viagem em torno do globo, foram apelidando esse novo mundo: os habitantes de pés grandes que foram apelidados de patagões, e a sua terra de Patagónia; ou a Terra do Fogo, com as montanhas brilhantes de fogueiras pelos patagões; ou o Oceano Pacífico, assim apelidado pelo nosso herói pela calmaria daquele imenso mar do Sul até então desconhecido pelos navegadores europeus; ou ainda a uma subespécie de pinguins.
A primeira metade do livro é sobre a vida de Fernão de Magalhães, ainda antes de se tornar planeta. De pajem da corte a soldado aos 25 anos, partindo em 1505 na direcção da zona das especiarias, até aos confins das malucas das ilhas Molucas, onde nascem a pimenta, a canela, a noz moscada e, sobretudo, o cravinho, tão capazes de enriquecer uma pessoa como de a enlouquecer, pois com uma só saca desse produto, se conseguisse regressar à pátria, poderia comprar uma casa ou uma quinta e viver sem nada fazer para o resto dos seus dias.
Com um certo revisionismo histórico, Fernão de Magalhães, agora narrador, tão depressa explica aos mais jovens as suas façanhas, num registo que lhes seja familiar (onde não falta um pequeno dicionário para as várias figuras históricas, locais e outros aspectos), como revela contrição pela forma como se fez a expansão do Império: «O pior eram as violências cometidas pelos nossos, quase sempre em nome da “verdadeira” religião», mas quando estamos metidos nas coisas nem sempre é fácil distinguir o que está bem do que está mal». Da mesma forma que tem um «nó atravessado na goela que nunca se desfez», por se ver rejeitado por D. Manuel I, O Venturoso (mais conhecido por Merceeiro noutros reinos europeus), vendo-se obrigado a bater à porta do reino vizinho, onde Carlos I lhe concede o patrocínio de uma frota e sua tripulação – e passando a ser acusado de traidor pelos portugueses.
Este livro não se esquiva às polémicas que envolvem a proclamação da viagem da circum-navegação: polémica que dura até aos nossos dias, quando a candidatura à UNESCO deste feito, enquanto património mundial, foi apresentada por Portugal e por Espanha. Se Fernão de Magalhães morre em 1521, sendo Elcano quem completa a viagem «um pouco por acaso», a verdade é que ele tinha ultrapassado entretanto a longitude das Molucas do Sul, onde já estivera antes, em 1512, e chegado às Filipinas pela via do oeste, descendo ao longo da América do Sul. E, claro, a condizer harmoniosamente com o texto cuidado e a aturada pesquisa, estão as ilustrações em tons quentes (recorre-se quase exclusivamente ao azul e ao laranja), que bebem do imaginário da época e, conforme a viagem se desenrola, podemos seguir o seu percurso num planisfério miniatura que assinala a rota percorrida naquelas páginas. Para cúmulo, a sobrecapa do livro transforma-se em mapa.
Em suma: mais do que um livro didáctico, colado às fontes, resulta desta história um fantástico relato de aventuras além-mar, que procura romper uma visão quadrada do mundo.