“Em Portugal, as resistências a propostas novas continuam a imperar, certas universidades continuam a premiar a endogamia e outras pouco ou nada promovem a competição saudável entre pares”.
Entrevista a Elvira Callapez, investigadora FCT no CIUHCT-FCUL.
Pode descrever de forma sucinta (para nós, leigos) o que faz profissionalmente?
De momento coordeno um projecto de investigação, financiado pela FCT, sobre a história dos plásticos, intitulado O Triunfo da Baquelite – Contributos para uma história dos plásticos em Portugal, desenvolvido no Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, da Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa CIUHCT-FCUL. O termo “baquelite” é desconhecido pela grande maioria do público e não só, pelo que se justifica desde já a sua definição. A baquelite é o primeiro plástico, material totalmente sintético, criado pelo homem, sintetizado em 1907 por Leo Hendrick Baekeland (1863-1944) e comercializado em grande escala em 1910).
O projecto propõe-se investigar aspectos da história dos plásticos em Portugal, alicerçando-se em estudos técnico-científicos e histórico-sociais, de história da ciência e da tecnologia e de cultura material. Pretende-se realçar os aspectos tecnocientíficos dos plásticos (e a sua comunicação ao grande público); a necessidade de preservar os objectos de plástico; a importância do plástico na evolução do design industrial, na estratégia das empresas e na vida quotidiana; a relação da indústria de plásticos com os seus actores (trabalhadores e elites locais) e com outras indústrias (eléctrica e de vidro) e ainda questões energéticas e ambientais relacionadas com os plásticos. Em suma, um dos objectivos deste projecto é estudar o impacto dos plásticos na sociedade portuguesa, desde a sua chegada em meados de 1930, através da baquelite, num país agrícola, sem investigação química e tecnológica nem tradição industrial, em contraste com os países industrialmente mais avançados, onde o plástico já se assumia como emblema da modernidade.
Este é um projecto que tem suscitado interesse a nível internacional, pelo que já inspirou a criação de Plastics Heritage European Association (PHEA), a fim de estabelecer uma rede que facilite a cooperação entre organizações e instituições, tais como universidades, departamentos, centros de investigação, museus e sociedades, em torno dos materiais plásticos. Permite desenvolver actividades, com foco em estudos culturais, técnicos, científicos, catalogação, popularização, e conservação do património comum de materiais e objectos históricos poliméricos (HIPOMs), em diversas áreas como arte, design, arquitectura, etnologia, ciência, tecnologia, indústria, bem como em arquivos e bibliotecas.
Agora pedimos-lhe que tente contagiar-nos: o que há de particularmente entusiasmante na sua área de trabalho?
A docência e a investigação são simultaneamente profissões e missões que classifico de nobres pela sua exigência, pela liberdade para criar, inovar e estabelecer relações com outras expressões culturais. A área de trabalho a que me dedico, História da Ciência e da Tecnologia, é deveras gratificante, estimulante e motivadora, mostrando o lado belo e humano de uma área de conhecimento muitas vezes vista como fria, neutra, objectiva e muito bem sucedida, como é o caso da ciência e da tecnologia.
Especificamente, a minha investigação centra-se na história dos plásticos, materiais que, infelizmente, são mal vistos/avaliados pela população em geral embora sejam apenas conhecidos por uma pequena franja. As emoções que os plásticos suscitam resultam mais de campanhas que os desprestigiam, apoiando-se em ocorrências como a morte de tartarugas, baleias, etc., o que fere a sensibilidade das pessoas. Pela comunicação social vai-se contactando com os alarmismos sobre as preocupações em torno das implicações ambientais do uso de plásticos, algumas legítimos e outras não. Mas um rápido olhar para a história do material revela o outro lado da questão. Os plásticos foram originalmente “inventados” para substituir o marfim, uma substância “natural”, cujo uso hoje é responsável pela extinção de grandes mamíferos, como o Rinoceronte Negro. Como a maioria dos materiais, os plásticos podem ser usados de forma mais responsável e adequada, quando melhor compreendidos. A realidade é que no mundo contemporâneo, os plásticos nos rodeiam e continuarão a ser importantes para nossa vida diária. Basta olharmos para nós próprios, para o que vestimos, para o que comemos, para os objectos do nosso dia-a-dia, em casa ou no trabalho, para comprovarmos que os plásticos são materiais únicos, com propriedades e características incomuns, que os tornam ideais para uma grande variedade de usos. Um entendimento apropriado desses materiais conduzirá a um desenvolvimento sustentável e inovador.
Para o plástico do século XXI, de facto, recomendo que não devemos manter os hábitos de desperdícios de produção e consumo de plástico do século XX. Temos a tecnologia para fabricar plásticos melhores e mais seguros, a partir de fontes renováveis que causam danos mínimos ou inexistentes no planeta e na nossa saúde. Temos políticas públicas que incentivam à construção de melhores sistemas de reciclagem e que até responsabilizam as empresas pelos produtos que colocam no mercado. Então, por que motivo surgem campanhas tão agressivas contra o plástico? Ao invés, deixo a ideia de fazermos o mesmo que nos Estados Unidos da América, onde um grupo de professores de ciência se voluntaria para fornecer, aos colegas professores dos ensinos básico e secundário, informações sobre materiais poliméricos e estratégias para incluí-los nos curricula. São os Embaixadores Polímeros, que têm a missão de promover a educação e o ensino de polímeros junto aos professores, alunos e público, com a ajuda de recursos de sociedades educacionais, industriais e profissionais.
Na realidade, os plásticos são objectos neutros, e todos os problemas que lhe são imputados resultam do comportamento dos humanos e não deles per se. Os plásticos merecem as preocupações? Facilitaram e facilitam o consumismo? De qualquer forma, nós precisamos deles. Para melhor conhecimento e divulgação dos plásticos, planeamos inaugurar uma exposição sobre plásticos em Abril de 2019, no Museu de Leiria e organizar um congresso internacional sobre plásticos, eventos para os quais são todos bem vindos: http://plasticsheritage2019.ciuhct.org.
Por que motivos decidiu fazer períodos de investigação no estrangeiro e o que encontrou de inesperado nessa realidade académica?
Todo o meu percurso académico universitário, pré-Bolonha (Bacharelato, Licenciatura, Mestrado e Doutoramento) foi feito em Lisboa, num tempo em que não havia as facilidades nem as possibilidades de mobilidade de que gozam os jovens actualmente. Passei pelo ISEL e pela FCT-UNL, viajando para os Estados Unidos da América, em 2004, para a Universidade da Califórnia, Berkeley (UCB), onde realizei o pós-doutoramento na área de História da Ciência e Tecnologia. Os Estados Unidos da América são muito fortes e têm uma enorme tradição na área de História da Ciência e Tecnologia. Nas grandes escolas como Harvard, Berkeley, Stanford, Los Angeles, etc. passaram e passam nomes de primeira linha na História da Ciência e Tecnologia, como por exemplo, George Sarton, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend, Stephen Jay Gould, Thomas Hughes, e muitos mais. Foram estes os factores que orientaram a minha opção para ir para os Estados Unidos da América fazer estudos complementares. Um sinal bem visível da boa prática de investigação científica e respeito pelo trabalho de um investigador, nesse país, manifestou-se, por exemplo, na resposta assertiva da UCB ao meu pedido para levar a cabo, nas suas instalações, o projecto que tinha em mente.
Por vezes o nosso próprio país não proporciona aquelas condições pelas quais lutamos, pelas quais ansiamos. Felizmente, o estrangeiro apresenta soluções para quem quer fazer ciência e tecnologia com todas as suas forças e capacidade, os nacionais emigram para os locais que melhor os acolhem. Por outro lado, este grupo especial de pessoas sabe que a mobilidade traz vantagens a todos os níveis. Os benefícios daí advindos não se traduzem apenas na aquisição de conhecimentos académicos mas também no enriquecimento pessoal. A diversidade de contactos humanos, de estratégias e metodologias de trabalho, a transferência de saberes que se efectiva, a relação informal, despretensiosa e simples que se estabelece com as figuras de primeiro plano mundial na nossa área de estudos, constituem motivações acrescidas para se gostar de trabalhar no estrangeiro. Algo de que espero não me esquecer diz respeito à forma positiva como os colegas se relacionam e a não cultura da lamúria e das queixas, mas sim da exigência, do estímulo, da promoção do debate, do respeito pelas ideias, pelo espaço e pelo tempo dos outros.
Que apreciação faz do panorama científico português, tanto na sua área como de uma forma mais geral?
Lembro-me que em 2006, a Portuguese American Post-Graduate Society (PAPS), de cuja direcção fiz parte, elaborou uma inovadora Declaração de Princípios Orientadores para a Revisão do Estatuto da Carreira Docente Universitária, em vigor na época, mas não vejo postos em prática esses princípios que romperiam e resolveriam, seguramente, muitos dos problemas denunciados e sentidos actualmente. Há que fazer justiça e devo confessar que depois de Mariano Gago, apesar de haver tentativas para melhorar o panorama científico e tecnológico, surgiu o monstro da troika…
Actualmente assiste-se a um descontentamento geral sobre as políticas científicas, nos diferentes graus de ensino. As críticas giram sempre à volta de condições de trabalho, falta de recursos (monetários, humanos, etc.) estagnação de carreiras, precariedade no trabalho, etc. O diagnóstico está feito, as razões detectadas, mas os problemas persistem. É fácil atribuir todos os insucessos à incompetência dos que governam. Qual o nosso papel enquanto sociedade? Que responsabilidade e com que grau de compromisso exigimos e nos envolvemos com os que nos governam? Porque não nos mobilizamos mais? Percorro vários ambientes académicos e verifico que há excelentes professores, investigadores, alunos mas também péssimas, pequenas e medíocres mentes. Ao nível de chefias intermédias há de facto gritantes exemplos. As resistências a propostas novas continuam a imperar, certas universidades continuam a premiar a endogamia e outras pouco ou nada promovem a competição saudável entre pares.
Atitude e facto positivo verifico na relação entre a universidade e algumas empresas/indústria. A importância e necessidade dessa ligação manifesta-se, por exemplo, no recrutamento de investigadores e no exercício do mecenato. São poucas as que participam neste processo, mas justiça seja feita a algumas a quem pessoalmente devo reconhecimento pelo seu envolvimento no projecto que coordeno. As barreiras existentes, fruto de culturas diferentes, parece-me que podem ser ultrapassadas, tendo presentes as características peculiares tanto da academia como das empresas.
Que ferramentas do GPS lhe parecem particularmente interessantes, e porquê?
A iniciativa é bastante meritória, tanto mais que permite criar e reforçar laços entre Portugal e as demais comunidades. Parece constituir-se como um elemento facilitador do estímulo à inovação, e à mobilidade de capital humano. É de louvar que tenha definido metas como o estabelecimento de pontes entre as competências existentes em diversos sectores, e a circulação de ideias por forma a que se mantenha a postura internacional das coisas, viva, eficaz e saudável.
GPS é um projecto da Fundação Francisco Manuel dos Santos com a agência Ciência Viva e a Universidade de Aveiro.
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