A diretora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Carla Nunes, alerta que o número de casos de covid-19 deve voltar a subir nas próximas semanas com o regresso das crianças e dos jovens às aulas.
Em entrevista à Lusa, a epidemiologista e matemática assume que o grupo das crianças abaixo dos 12 anos “é um risco”, uma vez que não foram incluídas no plano de vacinação covid e as vacinas autorizadas pela Agência Europeia do Medicamento (EMA) não estão ainda disponíveis para esta faixa etária, mas manifesta a expectativa de que tal não se traduza em situações de doença grave.
“Sabemos que não tendo maioritariamente situações graves, podem transmitir. O que acontece é que a quem eles podem transmitir [o vírus] já está mais protegido pelas vacinas. Vai, obviamente, aumentar o número de casos, porque vamos também sempre testar e rastrear nas escolas e isso tem de continuar a avançar, mas penso que não vai ter consequências em termos de casos graves e que se tornem mais importantes do que a importância de as crianças voltarem à escola”, explica.
Em relação às medidas de combate à pandemia para as escolas no próximo ano letivo, segundo o referencial da Direção-Geral da Saúde (DGS) divulgado na terça-feira – que prevê orientações mais flexíveis para o isolamento profilático de contactos de baixo risco, além da manutenção da utilização de máscara e do rastreio inicial -, Carla Nunes considera que a situação continua a requerer cuidados e uma monitorização atenta.
“Vamos ter de continuar a controlar o processo e a identificar quem são os [contactos] de alto risco e de baixo risco. Agora, o que se faz com isso e as medidas, obviamente, tudo isso tem de ser flexibilizado de outra forma”, nota, assinalando uma fase atual de “pós-vacinação” e que o “caos” gerado no último ano letivo com as suspensões frequentes de ensino presencial já não se justifica perante as consequências ao nível da expressão da doença.
Depois de alguma indefinição no processo de vacinação dos jovens entre os 12 e os 15 anos, inicialmente apenas para os jovens com comorbilidades e pouco tempo depois aberto a toda a faixa etária sem restrições, a diretora da ENSP da Universidade Nova de Lisboa evita alongar-se em comentários sobre um eventual passo seguinte que já está a ser alvo de ensaios clínicos: a vacinação das crianças com menos de 12 anos.
“É prematuro dizer isso. Tem de haver uma forte evidência de benefício da vacinação dessa faixa etária. Precisamos da tal imunidade global, de vacinar o mundo inteiro e as crianças fazem parte; agora, se esse vai ser o objetivo a curto prazo destes países, e em particular de Portugal, penso que é prematuro fazer essa análise. Efetivamente, eles não têm uma situação muito grave e é uma situação que tem de ser analisada com muita calma”, refere.
Carla Nunes reitera que tal cenário “não é uma urgência” em Portugal, preferindo apontar como “grande desafio atual” a retoma da normalidade na sociedade com “novas medidas adaptadas” e “uma vigilância e uma monitorização muito grandes”.
AS PESSOAS DEVEM CONTINUAR A USAR MÁSCARA DE PROTEÇÃO EM ESPAÇOS FECHADOS E MANTER AS RESTANTES MEDIDAS SANITÁRIAS CONTRA A COVID-19 NO FUTURO PRÓXIMO
Apesar de a atual fase do plano de desconfinamento do Governo para o controlo da pandemia prever o fim da obrigatoriedade da utilização de máscara em espaços públicos, cuja lei está em vigor até dia 12, Carla Nunes argumenta que está em causa uma relação “custo-benefício” na continuidade do uso deste equipamento de proteção individual que se devia manter.
“Em espaços fechados as pessoas devem continuar a ter a máscara, a ter o distanciamento, a lavar as mãos e a abrir sempre as janelas. São medidas que, de alguma forma, não nos inibem totalmente de retomarmos a nossa vida: podemos continuar a trabalhar, a sair, a ir ao cinema e retomar a maior parte das coisas que fazemos”, afirma a líder da ENSP, acrescentando: “Estas medidas não são limitativas da nossa vida, somente aborrecidas”.
Recorrendo ao barómetro covid-19, produzido pela instituição que lidera e cujos dados têm sido partilhados ao longo da pandemia nas reuniões realizadas no Infarmed entre especialistas e políticos, Carla Nunes reforça que o maior problema nas restrições adotadas nunca esteve, sequer, nas máscaras, mas sim na limitação das situações de confraternização com amigos ou familiares e adianta que 85% dos inquiridos só esperam um regresso à normalidade em 2022.
“Todos sabemos que isto tem de ser um compromisso e, se nós usarmos algumas destas restrições, é mais provável que não tenhamos de dar passos atrás. Voltaremos a ser os mesmos com outras medidas e outros cuidados, mas acho que é urgente retomarmos a nossa atividade como um todo. Temos de voltar ao nosso trabalho com as devidas adaptações: as máscaras, o distanciamento, os rastreios e os testes estarão dentro dessa normalidade”, frisa.
COVID-19 “VAI ENTRAR NO NOSSO CONJUNTO DE DOENÇAS”
Carla Nunes considera que a covid-19 deve deixar de ser pandémica e tornar-se endémica no futuro. “É uma doença que vai entrar no nosso conjunto de doenças, com as quais nós vivemos e haverá fases piores e fases melhores para essa doença, na melhor das hipóteses. A pior das hipóteses seria haver uma variante nova em que voltássemos quase ao ‘início do jogo’, mas que não está, obviamente, em cima da mesa”, afirma.
Segundo a epidemiologista e matemática, “o que interessa é continuar a fazer genotipagem e toda a vigilância epidemiológica” do vírus, no sentido de se “garantir que as variantes que estão a aparecer são sempre dentro do mesmo âmbito de todas as variantes” de preocupação que já foram reportadas pela classe científica.
Confrontada com a atual evolução da pandemia em Portugal, onde confluem uma elevada taxa de vacinação na população e números ainda expressivos de novas infeções e mortes diárias, a responsável da ENSP da Universidade Nova de Lisboa mostra-se, sobretudo, preocupada com a dimensão da mortalidade, permanentemente acima da dezena de óbitos nas últimas semanas.
“A mortalidade ainda mantém alguma grandeza”, nota, realçando a importância de “explorar muito bem quem são as pessoas que estão a morrer” da doença atualmente. “Se são pessoas que têm comorbilidades, se são pessoas mais velhas, há quanto tempo foram vacinadas”, observa Carla Nunes, salientando que “é preciso fazer uma análise muito fina sobre os mortos” e que isso pode remeter para a questão da terceira dose.
Para a líder da ENSP, a administração de uma terceira dose justificar-se-á perante os estudos que indiquem que a imunidade de certos grupos de pessoas “já desceu a um determinado nível”. No entanto, argumenta Carla Nunes, este “não é somente um problema de Portugal” e lembra os alertas que a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem feito sobre esta matéria.
“Se nós deixarmos que noutros países não haja vacinação, vai aparecer com mais facilidade uma variante que, mesmo numa perspetiva egoísta, nos vai afetar. É bom que nos preocupemos com o globo, porque aí é mais fácil haver novas variantes que põem em causa todo o nosso pseudo-equilíbrio nacional e, portanto, mais do que a terceira dose – que tem de ser vista para os grupos onde se começar a verificar maior mortalidade de casos graves -, vamos ter um problema se não conseguirmos tratar da saúde pública global”, garante.
Já sobre as reinfeções por covid-19, ainda pouco documentadas desde o início da pandemia, a especialista sustenta que “a própria definição de reinfeção não é simples” e que o intervalo de tempo ou as novas variantes podem influenciar de forma decisiva a questão, mas defende que vão aparecer “cada vez mais reinfeções” na população.
“Tem de haver um período de tempo suficientemente grande para ser considerada uma nova infeção. E depois ainda temos o problema de variantes diferentes: quem teve covid-19 no ano passado teve, provavelmente, a variante Alfa e, neste momento, quem tem covid-19 tem outra variante”, refere, concluindo que faltam ainda estudos sobre esta vertente da pandemia.
“OS ESPECIALISTAS DIZEM O QUE ACHAM E O GOVERNO FAZ O QUE QUER, OUVINDO ESTES E OUTROS ESPECIALISTAS E NÃO HAVENDO NENHUM TIPO DE CONDICIONAMENTO EXTERNO NESTA RELAÇÃO”
Questionada sobre o relacionamento entre os especialistas e os decisores políticos, a epidemiologista e matemática – que esteve sempre presente nos encontros efetuados na sede da autoridade do medicamento para a análise da situação epidemiológica – reconhece que é um processo que também passou por diferentes fases, mas não deixa de salientar a “abertura positiva” e que especialistas e dirigentes políticos tinham papéis distintos.
“É positiva a audição dos peritos e também é positivo que seja aberto ao mundo. Há determinados temas que, pela sua complexidade, por vezes, depois precisam de ser maturados a outros níveis que serão, com certeza, onde nós não estamos”, observa.
Já em relação à postura da Direção-Geral da Saúde (DGS) e as suas diferenças durante a pandemia, a diretora da ENSP da Universidade Nova de Lisboa nota que a covid-19 representou também uma “grande aprendizagem” para a instituição liderada por Graça Freitas e que as diferentes fases exigiram mudanças nem sempre fáceis na estratégia de comunicação.
“Houve uma primeira abordagem: toda a gente muito informada de qualquer pormenor, todos os dias e a todas as horas”, refere, admitindo um “excesso de informação” da DGS.
Por outro lado, destaca a entrada de outros atores neste processo, como a ‘task-force’ responsável pelo plano de vacinação, algo que entende como cada vez mais necessário, uma vez virada a página da pior fase da pandemia: “Temos de mudar os atores, porque não podem ser sempre os mesmos a falar em mortes e no dia seguinte a falar de vacinas”.