A liberdade é um conceito interessante. Todos temos o nosso conceito que aplicamos a diversas situações, na religião, na política, na vida em geral, no pensamento, nas atuações diárias, na arte, na escrita e até no amor. Enfim, qualquer atividade humana é suscetível de ser confrontada com a liberdade. Não sei se com a liberdade ou com a falta dela. Talvez a sua falta, porque nada é mais difícil do que a definir. Gritamos pela liberdade, mas será que somos verdadeiramente livres?
Quando as coisas correm mal é usual ouvir que é vontade de Deus. Ele é que sabe, porque são insondáveis os seus desígnios; algo que sempre me deixou ficar muito perplexo. Nunca compreendi, e nem quero compreender, esta forma de ser de um Deus violento tão bem desenhado no Velho Testamento. Se assim fosse não teríamos direito à verdadeira liberdade. Mas também nunca compreendi, e continuo a não compreender, que as consequências das nossas ações sejam devidas ao “livre arbítrio”; outro conceito interessante que desresponsabiliza Deus passando a ser nós os responsáveis pelas nossas escolhas e iniciativas, como se fôssemos livres. Mas não somos livres e nem nunca seremos. Somos matéria regulados por forte forças biológicas herdadas durante a evolução e que estão sempre prontas a manifestar-se, por vezes de forma pouco ortodoxa ou convencional, já que a educação e a cultura nem sempre conseguem evitar as suas expressões.
Temos uma larga margem de escolher os nossos atos e comportamentos, mas mesmo assim existe um somatório de múltiplas forças, biológicas, culturais, religiosas e ideológicas que condicionam o tal “livre arbítrio” ou se confundem com ele. Não somos livres, mas temos o direito e a pretensão em ser, seja qual for a área da vida humana. Pelo menos ficamos com essa sensação, mas tudo não passa disso mesmo, uma agradável sensação. Devemos continuar a lutar e a preservar a liberdade? Sim. Não obstante todos os condicionalismos sempre é algo muito interessante e que nos ajuda à construção dos sonhos, essa antecipação de um futuro desejado, mas nem sempre alcançado. Dizem que o “sonho comanda a vida”. Tenho dúvidas, é mais uma forma de a enganar, por vezes é bela, excitante e rica, mas depois, na prática, quase sempre se desvanece no cinzento ou no frio da nossa existência. Talvez o sonho seja a expressão mais pura dos nossos desejos em que a liberdade ainda pode existir. Se é que pode. Sonhemos então. Também não custa muito, sempre é uma bela ilusão.
*Salvador Massano Cardoso, Professor Catedrático Jubilado de Epidemiologia e Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, onde também foi Director do Instituto de Higiene e Medicina Social e responsável pelos cursos de mestrado em Saúde Pública e em Saúde Ocupacional. Especialista em Medicina do Trabalho pela Ordem dos Médicos.