O espaço e o tempo são formas a priorida sensibilidade tal como postula o filósofo alemão Immanuel Kant na sua Crítica da razão pura, publicada pela primeira vez em 1781. A priori significa independente da experiência. Quer isto dizer que independentemente do objecto que nos seja dado à percepção, o espaço e o tempo estão sempre lá, dando forma e possibilitando essa experiência. Os dados dos sentidos são recebidos nesse formato espácio-temporal que configura o nosso horizonte perceptivo. Tente-se imaginar um objecto, qualquer que ele seja, pode ser até um objecto fictício, tentemos imaginá-lo sem que nos seja dado num certo espaço e num determinado tempo. Mesmo que esse espaço aconteça no interior da nossa cabeça, e o tempo seja um tempo imaginado, é impossível que qualquer coisa se apresente fora destas duas coordenadas.
Em época de pandemia, ao atravessarmos um período de confinamento prolongado, cumpre perguntar o que é que acontece quando ficamos cerceados no espaço. Mais ainda quando esse espaço pode, eventualmente, ser fechado, se não se tem um jardim, um terraço ou uma varanda. Cumpre também perguntar se, e de que modo, é que esta contracção do espaço influi na percepção do tempo.
Vivíamos acossados pelo tempo do relógio, as horas a trote, os minutos a galope e os segundos, esses, tão rápido que nem senti-los! A vida num desviverde prazos e obrigações de correria infernal. Eis se não quando, se abate sobre nós uma pandemia e, de repente, não há correria possível, a não ser que se compre uma passadeira rolante para a cozinha, se possível a barrar o frigorífico, que isto de ficar em casa engorda.
Julgávamos que aquela correria toda, o não conseguir parar em casa, o não ter sossego, o estar sempre a saltar de um programa para outro, era a vida. Queixávamo-nos mas, lá bem no fundo, gostávamos de nos poder queixar. Estávamos ocupados, e isso fazia-nos sentir bem. Éramos necessários, precisavam de nós, tínhamos um papel a desempenhar na sociedade e, se somos sinceros, com maior frequência do que admitiríamos, julgávamo-nos imprescindíveis. Mas o inimigo invisível veio demonstrar-nos que não. Afinal, até parece que não fazemos falta nenhuma, ou decerto bastante menos do que supúnhamos.
De repente, temos muito mais tempo mas muito menos espaço. O espaço está cheio das coisas da casa e das pessoas da casa, que padecem a mesma condição. E com tanto mais tempo e tanto menos espaço os encontrões são inevitáveis. Anda-se às turras por tudo e por nada, e nem sequer dá para ir arejar, dar dois dedos de conversa com os colegas de trabalho, ou ir ver o futebol pró café. Quem vive sozinho não corre o perigo dos encontrões, mas sente a presença das paredes que parecem abater-se sobre o próprio. Há também o silêncio, o silêncio, que as vozes da televisão e do rádio não fazem mais que mascarar. Damo-nos conta, quiçá pela primeira vez, do valor inestimável da voz humana, proveniente de um corpo quente ali ao pé. E até a palavra menos amistosa, até a discussão desagradável, parecem agora preferíveis ao silêncio que cheira a morte. A casa, porto de abrigo, transformou-se em prisão. Mas terá de ser assim?
Vivia-se virado para fora em milhentos afazeres, convívios e diversões, e agora não há mais remédio senão virar para dentro. E esquecemo-nos de como se faz. Parecemos os prisioneiros no fundo da caverna de Platão, que julgam que as sombras projectadas na parede são a realidade. E agora que ficámos sem essas projecções ilusórias ensandecemos. Queremos rapidamente outra ilusão para substituir a que tínhamos. Queremos engolfar-nos num frenesim, queremos ocupar-nos com não importa o quê, tudo é melhor que a cabeça abandonada a si própria. É como se fossemos seres tóxicos para nós próprios. Deixados a sós tendemos para a auto-destruição. Mas terá de ser assim?
Na alegoria platónica os prisioneiros agrilhoados no fundo da caverna podem apenas olhar em frente, para as sombras projectadas na parede do fundo da caverna. Há um que consegue soltar-se, vira as costas aos companheiros e à parede de sombras e empreende o caminho ascendente que leva à saída da caverna. Quando conseguir sair verá a luz do dia e terá acesso às coisas mesmas, à verdadeira realidade. Porém, até lá chegar, passa por muitos perigos, e por muitos momentos de exasperação. À medida que avança, a luz aumenta e o prisioneiro, habituado à escuridão no fundo da caverna, experimenta uma dolorosa ofuscação. É a cegueira, a perda total de referentes, a fragilidade tremenda. Apenas com insistência e com tempo, os olhos conseguem adaptar-se e o prisioneiro pode prosseguir… Até que um novo momento de ofuscação o obrigue a parar, e de novo padeça de incapacidade, de ineficácia, com o imenso medo que acarretam.
Apesar das dificuldades do caminho, uma vez empreendido, o prisioneiro já superou a prova mais difícil de todas. Nenhum período de ofuscação será tão duro nem tão difícil como aquele gesto inicial, centro nevrálgico desta alegoria: o momento em que o prisioneiro vira o pescoço.
Virar o pescoço significa que se modificou o ponto de vista. O horizonte de sentido expande-se. De repente, aquilo que se julgava ser a realidade, não só se revela uma falácia, mas sobretudo exibe a sua condição mínima, exígua… Apenas sombras na parede da caverna, quando os verdadeiros objectos que as provocam estão lá fora, num mundo imenso, sob a vastidão do sol e do céu.
No nosso caso, a contracção do espaço fez com que se produzisse uma ampliação do tempo, e este obrigou, queiramos ou não, a virarmos o olhar para dentro. E estamos ofuscados, os olhos doem e não conseguimos ver nada. Levámos toda a vida virados para fora, não sabemos lidar com esta calma, com este silêncio, com esta inactividade, com todas estas condições tão propícias à introspecção.
De repente, damo-nos conta de que o relógio é um instrumento de medição do tempo muito rudimentar. A nossa própria linguagem que divide em passado, presente, e futuro, a forma-tempo que nos constitui, é tosca e grosseira. Experimentamos muito mais formas-tempo que essas. Qualquer obra musical é um bom exemplo disso.
Olhar para dentro custa muito. Então, por todo o lado se oferecem para vir em nosso auxílio. São gurus e xamanes, videntes e cartomantes, uma quantidade enorme de gente que diz ter ficado iluminada num qualquer retiro de fim-de-semana, ou num curso pela internet. Há sempre quem tenha a suficiente astúcia para se aproveitar dos mais frágeis ou incautos. Que fazer então?
Nas sei. Não sei. Não sei. Tomara vislumbrar para além da minha própria ofuscação. Não sei. Não sei. Não sei. “Só sei que nada sei.” ― A douta ignorância socrática! Não vou mascara-la com uma falsa sabedoria que me apazigúe deste estar a sós comigo. Escolho aturar-me. Agora que não posso escalar montanhas, nem fazer aquele safari tão estupidamente adiado, talvez tenha chegado o momento de cumprir o oráculo de Delfos. Agora que o espaço em meu redor se contrai e o tempo se expande, abraço esta inexorável aventura: “Conhece-te a ti mesmo!”
* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico