Como vai este país
O ano era 1975 e o país visto pelos ecrãs da RTP era cinzento. Cinco anos antes da primeira emissão a cores, duas figuras à Chaplin, completas com bigode, chapéu-coco, bengala. De um lado, o Sr. Feliz, do outro o Sr. Contente, perguntavam (e a audiência ecoava) como ia o país.
Quarenta e cinco anos depois, a televisão é a cores mas no que à saúde psicológica diz respeito, o país ainda parece ir cinzento. Em Portugal, 2 milhões e 300 mil portugueses precisam de apoio psicológico, segundo a estimativa avançada pela Ordem dos Psicólogos Portugueses. São cerca de 1 em 5 portugueses que vivem com problemas como stress, ansiedade ou depressão. E a esta estatística soma-se outra igualmente inquietante: o 5º lugar entre os países com maior consumo de ansiolíticos e antidepressivos, segundo estimativas da OCDE.
Os dados mais recentes do Infarmed mostram-no também com o registo de 2 691 482 embalagens de medicamentos da classe dos ansiolíticos, sedativos e hipnóticos e 2 544 635 embalagens da classe dos antidepressores vendidas em apenas três meses, de janeiro a março de 2021. Trocando por imagens: se juntarmos todas as embalagens consumidas pelos portugueses apenas no espaço de um ano, poderíamos construir uma ponte de Lisboa a Munique.
Não há saúde sem saúde psicológica
O grande erro de Descartes foi talvez o de nos ter persuadido que corpo e mente são fundamentalmente diferentes. Ao pensarmos ainda hoje nesta separação, somos levados a crer que corpo e mente ocupam planos não apenas distintos, mas inconciliáveis. À saúde é ainda votado aquilo a que ao corpo diz respeito, esquecendo a incapacidade causada pelas perturbações psicológicas. Esquecidos são também aqueles que procuram resposta médica para sintomas físicos para os quais não se encontra causa orgânica. Esses casos, que se estima afetarem algures entre 2% a 21% da população, conhecem-se genericamente como perturbações de somatização. Trata-se de dificuldades muitas vezes crónicas que se podem traduzir em dor física ou na perturbação do funcionamento de diferentes sistemas de órgãos.
Um exemplo raro, mas particularmente célebre (talvez pelo pendor “poético”) é a chamada “síndrome de coração partido”. A cardiomiopatia de Takotsubo foi descrita pela primeira vez no Japão no início da década de 90. Prevalente sobretudo em mulheres adultas mais velhas, esta condição traduz-se em sintomas que em tudo se confundem com um episódio de doença cardíaca: dor no peito, dificuldades respiratórias e anomalias do funcionamento do ventrículo esquerdo. Os eletrocardiogramas revelam anormalidades semelhantes a um enfarte, sem que haja, no entanto, qualquer indício de obstrução. Todos estes casos têm resolução no espaço de um mês e todos partilham a etiologia: eventos emocionalmente perturbadores como perdas significativas e inesperadas, acidentes ou violência doméstica.
Outros exemplos há da relação corpo-mente mais quotidianos, mas não menos poéticos. Nas mais diversas alturas da vida já todos sentimos “borboletas na barriga” por algo que nos deixou ansiosos ou entusiasmados ou “nós na garganta” de ansiedade ou melancolia. Estas metáforas sugerem-nos como estados emocionais transitórios podem agitar, impelir ou modificar o corpo das formas mais surpreendentes. Em qualquer caso, a evidência parece apontar no mesmo sentido. Não se pode separar o corpo da mente (nem a mente do corpo) e dessa impossibilidade resulta que não se possa igualmente dissociar saúde geral da saúde psicológica (nem a saúde psicológica da saúde geral).
A saúde mental num mundo desigual
No passado dia 10 de outubro assinalou-se o dia da saúde mental, trazendo a diálogo a “saúde mental num mundo desigual”. No plano global, a iniquidade expressa-se desde logo pela incidência desproporcionada de perturbações mentais nos países em desenvolvimento. Segundo algumas estimativas, cerca de 80% das pessoas afetadas por perturbações mentais vivem em países de afluência baixa ou média, sendo-lhes alocados apenas 10% dos recursos globais para saúde mental.
A investigação científica tem vindo também a contribuir para um consenso emergente em torno da ideia de que a desigualdade fragiliza a saúde psicológica. Segundo um estudo de revisãopublicado na revista científica Lancet, a evidência parece apontar para uma associação significativa entre a desigualdade e a prevalência de perturbações de saúde psicológica como a depressão. Parece haver duas formas confluentes pelas quais se estabelece este nexo. Num plano material, a pobreza e a privação parecem contribuir para níveis mais elevados de stress e um acesso deficitário a cuidados de saúde primários. No plano psicossocial, fatores como a insegurança, a menor participação comunitária ou a baixa coesão social parecem influenciar negativamente os indicadores de saúde e bem-estar.
A somar às desigualdades pré-existentes, sabe-se hoje que as repercussões da pandemia por COVID-19 na saúde foram sentidas de forma desproporcionadamente severa nas comunidades mais desfavorecidas e entre grupos minoritários. Os dados mais recentes parecem sugerir que o mesmo se verifica no plano da saúde psicológica. Minorias étnicas, minorias sexuais e de género, mulheres, jovens e desempregados estão entre aqueles que mais sofreram os impactos adversos do isolamento, da insegurança e do abalar do sentido de normalidade e previsibilidade.
Sobre o real impacto da pandemia na saúde psicológica é ainda difícil conjeturar, faltando o tempo e o distanciamento necessários para esse exercício. Sabe-se também que o retrato da saúde psicológica vai desenhar-se em função das decisões tomadas agora e no futuro mais imediato com vista a melhorar o acesso aos cuidados de saúde psicológica e promover a resiliência face aos impactos secundários da crise. Num momento em que intuímos que nada será como dantes, exige-se que inventemos uma nova forma de estar no mundo, um novo “tempo”. Este pode ser o tempo da idealização de um novo estado de coisas, para o qual não se coloque como meta última sobreviver, nem tão pouco se procure apressar um progresso rápido, construído à custa da marginalização. Pode ser o tempo de abandonar definitivamente uma noção museológica de saúde, que estigmatiza e exclui. Pode ser o tempo de projetar uma sociedade em que convictamente se legitime o direito a aspirar ao desenvolvimento máximo de cada pessoa e à concretização do melhor de cada um. Em todos os casos, este terá de ser o tempo da saúde psicológica.
Observação: Ainda que falemos aqui do dia da saúde mental, ao longo do texto é dada preferência ao termo “saúde psicológica”, como forma de nos referirmos não apenas à ausência de perturbação mental, mas a um estado global de bem-estar e a formas tendencialmente adaptativas de pensar, sentir e agir.