O imaginário colectivo do Algarve está povoado de lendas de moirinhas encantadas que por amor dos cristãos se ficaram a penar. Por isso, a história podia começar como muitas outras: “era uma vez uma princesa… chamada Madragana e por ela, um dia, se perdeu de amores um rei cristão!”
E se há conquistas que se obtêm apenas pela força das armas, outras se fazem somente pelo coração. Das duas maneiras, logrou D. Afonso sair vitorioso, apesar do seu coração afogueado ser pequeno demais para tanta paixão!
O caso passou-se em 1249, aquando da tomada de Faro aos mouros. Uma conquista pacífica em resultado de uma rendição negociada. Rezam as crónicas que, após cerco apertado, o alcaide Aloandro Ben Bakr acedeu sentar-se à mesa com D. Afonso III, de Portugal, para acertarem os termos da rendição daquela que era a última praça em poder dos árabes no Algarve.
Ficou então acordado entre as partes que todos os árabes que o desejassem podiam permanecer em Faro, sujeitando-se, contudo, às leis do novo senhor e do novo reino. O Algarve, no seu todo, passava a partir de então, a fazer parte integrante do reino de Portugal.
Foi por essa altura que D. Afonso conheceu a moirinha por quem haveria de se tomar de amores. Chamava-se Madragana Ben Aloandra e era, ao que se supõe, filha do alcaide deposto, Aloandro Ben Bakr.
Madragana, morena, olhos amendoados e longos cabelos pretos, que nascera em Faro em 1230, tinha então 19 anos. Depois de batizada, adoptou o nome cristão de Mor Afonso, tendo ficado também conhecida por Mourana.
Não é certo se a bonita moirinha estaria incluída nas condições de paz acertadas entre as partes. Sabe-se, sim, que foi uma paixão assolapada, o que não era propriamente novidade vindo de quem provinha. Verdade seja dita, que D. Afonso já tinha fama de grande “conquistador”, pois que lhe eram já conhecidas e celebradas as suas outras, muitas, paixões amorosas.
Conhecido na história pelo cognome de Bolonhês, o rei não faria “mui jus” ao título, porque depressa se procurou livrar dos laços matrimoniais com Dª Matilde de Bolonha. E foi mantendo, ao mesmo tempo, uma outra relação conjugal com Dª Beatriz, de Castela, a ponto de a primeira ter solicitado a intervenção arbitral do Papa para uma situação de insólita bigamia.
Nem as ameaças de excomunhão por parte do Vaticano e dos bispos portugueses demoveram o rei que prolongou a situação até à morte de Dª Matilde. Além disso, ficaram-lhe ainda conhecidas no decurso da sua vida muitas outras amantes, a que se veio juntar a novidade que acabara de conhecer nas muralhas da vila adentro.
À excepção de Dª Beatriz que viria a ser rainha consorte de Portugal, foi fugaz essa relação com a moira algarvia, como de resto tinham sido todas as suas relações anteriores. Ficaram dessa paixão, dois filhos: Martim Afonso Chichorro e Urraca Afonso de Portugal.
Quebrado o encanto, partiu el-rei para outras aventuras e outros abraços, aumentando a lista das suas conquistas e dos seus afectos: Madalena Gil, Elvira Esteves, Marina Pires de Enxara e ainda outra que se recusou a dar a cara e o nome.
Passados anos, abandonada pelo rei, a Mourana não ficou, porém, desamparada e acabou logo por se casar com um cavaleiro de Afonso III, de seu nome Fernão Rei, de quem teve uma filha “devidamente documentada”, chamada Sancha Fernandes.
Por sua vez, o filho do rei e da moirinha, Martim Afonso Chichorro, que foi governador de Chaves, viria a casar com Inês Lourenço de Valadares e, saído dessa relação, conta-se um segundo Martim Afonso Chichorro que contraiu casamento com Aldonça Anes de Briteiros. O filho destes foi um tal Vasco Martins de Sousa Chichorro, que veio a ser chanceler-mor de D. Pedro I.
É do ramo familiar de Madragana que, supostamente, vem a toponímia que deu nome à cidade de Faro. Seu pai, Aloandro Ben Bakr era descendente da família Ban Harun e a cidade fazia parte do reino muçulmano do Algarve e da taifa de Xantamaria de Harun, desde 1018, até que a cidade foi anexada pelo governador de Sevilha, em 1051.
A família Ban Harun permaneceu em Faro até ao édito de expulsão de mouros e judeus, decretado por D. Manuel, a 6 de Dezembro de 1496, desconhecendo-se se foram convertidos ao cristianismo ou emigraram para o norte de África.
Seja como for, os seu nomes ficaram para sempre ligados à cidade de Faro, ao Algarve e à história de Portugal. Não consta que a moirinha de D. Afonso tenha ficado presa no tempo ou se alguma vez tenha sido vista agarrada como as heras aos panos das muralhas do castelo.
Menos sorte tiveram outras que, ainda hoje, em noites de luar crescente, são vistas junto ao arco do repouso ou para os lados do rio seco, cabelos em desalinho, conformadas ou chorosas, à espera do predestinado que há de quebrar-lhes o encanto.
Fontes: (Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1976); Brandão, António, quarta parte da Monarquia Lusitana desde D. Sancho I até todo o reinado de D. Afonso III, 1632; outras)
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de setembro)