As Mulheres da Minha Alma, publicado simultaneamente pela Porto Editora e pelo Círculo de Leitores em Novembro de 2020, com o subtítulo Sobre o amor impaciente, a vida longa e as bruxas boas, é o mais recente livro de Isabel Allende, pouco menos de um ano depois do seu retorno à ficção histórica em Longa pétala de mar, poderoso romance ao nível dos melhores livros da autora. Isabel Allende tem agora quase 80 anos, mais de 20 livros publicados, cerca de 70 milhões de exemplares vendidos um pouco por todo o mundo e é a autora de língua espanhola mais lida.
Este não é o primeiro livro de não-ficção da autora, mas é certamente dos mais complexos, construído num palimpsesto. Apesar de começar com um tom memorialista, num registo autobiográfico da infância à idade madura, converte-se depois num manifesto feminista, onde não faltam números, estatísticas, citações, situações experienciadas em primeira mão e dados preocupantes que revivificam a jornalista que Isabel Allende era antes de se dedicar à escrita por inteiro. Allende criou, aliás, uma Fundação destinada ao empoderamento das mulheres e meninas de alto risco com as receitas provenientes do livro Paula, uma memória e uma carta de celebração da vida da sua filha – não lhe podemos chamar despedida pois para Allende a sua filha Paula, tal como outros espíritos amigos, nunca partiu completamente.
Este livro, escrito para as suas leitoras, é também uma declaração de amor para essas mulheres extraordinárias que compuseram a sua vida – Paula, a agente literária Carmen Balcells, a mãe Panchita – e que nós já conhecemos tão bem como as suas personagens de papel, como a omnipresente Eliza Sommers (heroína de Filha da Fortuna), além de outras mulheres cuja vida tem sido dedicada a tornar o mundo um lar para todas as mulheres, e ainda escritoras companheiras de percurso que Allende vai evocando e citando, como Margaret Atwood ou Virginia Woolf. Mas além do feminismo este é também um livro sobre envelhecer com graciosidade e sobre o amor, mesmo em tempos de pandemia.
P – Iniciar este livro é como ler uma memória, mas apesar de ter sido escrito por uma mulher sobre as suas mulheres e para as suas leitoras mulheres (que interpela constantemente), páginas depois de evocar a sua mãe percebemos que há uma figura masculina que é quem mais se destaca, a do seu avô.
R – Alguns homens têm sido muito importantes na minha vida, em particular o meu avô, o meu padrasto e o meu filho Nicolás. Eu vivi com o meu avô até aos 10 anos; ele foi um pai-substituto para mim pois o meu pai biológico abandonou a família. Os seus ensinamentos, o seu exemplo, o seu código moral rígido e as suas histórias extraordinárias formaram o meu carácter desde cedo. A sua voz vive constantemente na minha mente. Creio que me tornei feminista em parte como desafio à autoridade patriarcal do meu avô.
P – Foi para esse avô que escreveu A Casa dos Espíritos, romance que começou como uma carta de despedida quando soube que ele estava doente. Como conseguimos relacionar o avô que tantas vezes recorda, com carinho e admiração, com a figura autoritária e por vezes cruel de Esteban Trueba (que Jeremy Irons interpretou tão bem)?
R – Esteban Trueba representa uma elite conservadora e quase feudal de proprietários chilenos durante a primeira metade do século XX. Chamavam-se a si mesmos de “aristocracia castellano-vasca”, a aristocracia castelhana e basca. O meu avô tinha alguns dos traços de Esteban, em parte porque pertenceu à mesma alta classe social, mas não era um violador nem um assassino. O meu avô foi um homem digno, honesto, e com altos princípios. Tenho a certeza de que não se teria reconhecido no carácter de Esteban Trueba.
P – Neste livro refere-se sempre apenas de raspão à questão do exílio, quando se viu obrigada a sair do Chile, devido ao golpe militar.
R – Não era pertinente para o livro e já o contei em outras memórias, como Paulaou O Meu País Inventado.
P – A sua avó Isabel é uma memória frágil de quem herdou a sua espiritualidade e sensibilidade. A personagem Clara é inspirada na sua avó. Chegou a conhecê-la bem?
R – Não conheci bem a minha avó porque ela morreu quando eu era pequena. Lembro-me dela vagamente e suponho que terei inventado o resto com base naquilo que ouvi contar. Ela era uma espécie de lenda. Há muitas histórias e anedotas sobre ela e as suas faculdades paranormais. Eu cresci com uma avó mítica.
“Sei que o amor e a paixão são possíveis em qualquer idade”
P – Por falar em Clara e Esteban Trueba, quando o filme foi rodado em Portugal chegou a acompanhar as filmagens? Como se sentiu ao ver o seu livro transformado num filme que, inclusivamente, corta uma das gerações, pois de Clara passa para Alba, esquecendo Blanca…
R – Não visitei as filmagens em Portugal. Passei uma semana com a equipa da filmagem num estúdio em Copenhaga. Gostei muito do filme e não me importei quanto às mudanças inevitáveis que o realizador teve de fazer.
P – Entre todas as personagens que chegam a pulular entre livros, como Nívea e Severo Del Valle, ou mesmo Clara que ressurge em Longa pétala de mar, a que aqui se destaca é Eliza Sommers, a jovem que partiu por amor para o cenário da febre do ouro e se fez passar por homem.
R – Para mim Eliza Sommers representa as primeiras feministas que tiveram de deixar a segurança (e prisão) das suas casas e tomar de assalto o mundo dos homens. Eliza foi à procura do amor e conquistou algo igualmente precioso: a liberdade.
P – Quase poderíamos pensar que a Isabel é uma céptica no amor… Eliza, como várias heroínas suas, não é a jovem donzela que se deixa arrebatar pois nos seus livros o amor nunca é cor-de-rosa mas sim uma espécie de via para a emancipação… Eliza, aliás, termina o livro sem o homem que perseguia e descobre o amor onde menos esperava…
R – O amor tem sido importante na minha vida. Sou abençoada; nunca vivi sem amor. É também importante na minha escrita, mas, tal como diz, o amor nunca é perfeito, porque não é perfeito na vida real. Desejava poder escrever romances com um final feliz!
P – Ainda sobre o amor… os seus últimos romances parecem pulsar com a pujança dos primeiros, como O amante japonêsou Longa pétala de mar.
R – A idade não alterou a sede por amor na minha vida ou o entusiasmo de escrever sobre o amor nos meus livros. E porque é que haveria de alterar? Sei que o amor e a paixão são possíveis em qualquer idade, por isso nos meus últimos três romances tenho amantes mais velhos.
“Espero que depois da pandemia sejamos capazes de imaginar e criar uma normalidade melhor”
P – Apesar de viver a maior parte da sua vida na Califórnia, ainda hoje escreve em espanhol. No livro, pode ler-se que «A linguagem é muito importante, pois costuma determinar a forma como pensamos.» (p. 68) Pode explicar-nos porque é que ainda hoje continua a escrever em espanhol? É também a língua em que pensa? A língua em que sente melhor?
R – Eu vivi em inglês durante 32 anos, mas ainda sonho, conto, rezo, cozinho, faço amor e escrevo apenas em espanhol. Claro que preciso de ter um dicionário de espanhol na minha secretária porque esqueço-me com frequência de palavras em espanhol que só me ocorrem em inglês. E vice-versa…
P – Neste livro não só cria um manifesto feminista como um libelo do envelhecimento, mas sobretudo contesta o politicamente correcto e defende o binário pois separa muito bem a forma de sentir e de pensar da mulher da do homem…
R – Não sou contra os géneros fluídos, muito pelo contrário, defendo o direito de cada indivíduo definir o seu género. Não é preciso mantermo-nos apenas entre um género ou outro. Contudo, ao falar da nossa civilização, é necessário usar os termos masculino ou feminino para definir valores e atitudes. O patriarcado é o sistema prevalecente para a opressão política, económica, cultural e religiosa; durante milhares de anos tem assegurado o domínio e os privilégios do género masculino. O feminismo é uma revolta contra a autoridade masculina. Pretende substituir o patriarcado com um sistema em que a gestão mundial seja partilhada equitativamente entre homens e mulheres, em números e condições, e que os valores masculinos e femininos tenham o mesmo peso na sociedade. Esses valores são diferentes.
P – Além do empoderamento feminino, a sua Fundação também se centrou no apoio aos refugiados desde 2016, principalmente na fronteira entre os E.U.A. e o México.
R – Sim. Há uma crise humanitária na fronteira entre os E.U.A. e o México em que se reuniram milhares de pessoas que procuram asilo e migrantes que fugiram às condições terríveis na América Central. Entre eles, os mais vulneráveis são mulheres e crianças. A minha fundação tenta ajudá-los.
P – Num livro que apela à mudança de consciência, escreve as últimas páginas em março de 2020 em pleno confinamento justamente quando o mundo quase parou. O que acrescentaria quanto ao que se tem vivido desde então?
R – Espero que o mundo tenha aprendido uma lição difícil. O vírus tem-nos ensinado que somos uma família humana; o que acontece a uma pessoa numa cidade na China acontece a todos nós e a única forma de vencer este inimigo invisível é através de um esforço colectivo global. Todos vivemos neste planeta frágil. Temos um destino comum. Espero que depois da pandemia sejamos capazes de imaginar e criar uma normalidade melhor, uma realidade mais inclusiva, sustentável, razoável, empática.
P – Por fim, os vários poemas citados e em destaque neste livro obedecem a critérios afectivos?
R – Os poemas ilustram alguns dos temas do texto. Por exemplo, quando eu explico porque é que o feminismo é ruidoso, o poema «Arde» de Miguel Gane, que inicia por «Não, caladinha não ficas mais bonita», pareceu-me apropriado.
INTERVIEW WITH ISABEL ALLENDE: “AGE HAS NOT CHANGED THE WISH FOR LOVE IN MY LIFE”
Q – The beginning of the book The Soul of a Woman sounds as if one is reading a memoir. Although it was written by a woman about the women around her and for her female readers (which you address constantly), few pages later, after reminding your mother, we realise there is a male figure that becomes even stronger, your grandfather.
A – Some men have been very importante in my life, especially my grandfather, my stepfather and my son Nicolás. I lived with my grandather until age 10, he was a father substitute for me because my biological father abandoned the family. His teachings, his exemple, his rigid moral code and his fabulous stories formed my character from early on. I carry his voice in my mind constantly. I suppose that I became a feminist in part to defy my grandafther’s patriarcal authority.
Q – Indeed it was for your grandfather that you wrote The House of Spirits, a novel that started as a farewell letter when you found out he was ill. How can we relate the grandfather, that you so often remember with affection and admiration, with the authoritary and sometimes cruel figure of Esteban Trueba (so brilliantly played by Jeremy Irons in the film adaptation)?
A – Esteban Trueba represents an elite of conservative and almost feudal Chilean landowners during the first half of the XX century. They called themselves the “aristocracia castellano-vasca”, the Castillian and Basque aristocracy. My grandfather had some of Esteban’s traits, in part because he belonged to the same upper social class, but he was not a rapist or an assassin. My grandfather was a decent, honest, upstanding man. He died before he could read the novel. I am sure he would not have recognized himself in the character of Esteban Trueba.
Q – In the book, you never really address the moment you had to exit Chile, after the militar coup. Is that too hard to remember?
A – It was not relevant to the book and I have told it in other memoirs, like Paula and My Invented Country.
Q – Your grandmother Isabel is a fragile memory of whom you inherited your spirituality and sensitivity. Clara, in The House of Spirits (incidentally, my niece is named after her), is inspired by your grandmother. Did you have the chance to know your grandmother well?
A – I didn’t know my grandmother well because she died when I was little. I remember her vaguely and the rest I suppose I have invented based on things I heard about her. She was a sort of legend. There are many stories and anecdotes about her and her paranormal faculties. I grew up with a mythical grandmother.
Q – Speaking of Clara and Esteban Trueba – did you get to watch the shooting of the film, when it was filmed in Portugal? How did you feel seeing your book made into a movie that cuts out one of the generations, as it passes from Clara to Alba, ignoring Blanca…
A – I didn’t visit the set of the movie in Portugal. I spent a week with the movie team in a studio in Copenhagen. I liked the movie very much and didn’t mind the inevitable changes that the director had to make.
Q – Among all the characters that pass from book to book, such as Nívea, or even Clara (who reemerges in Long Petal of the Sea), the one that shines the brightest here is Eliza Sommers, the young woman that abandoned everything for love, pretended to be a man, and left to California in the midst of the golden rush.
A – To me Eliza Sommers represents the early feminists who had to leave the security (and the prison) of their homes and take by assault the world of men. Eliza went to the California gold rush in search of love and she aquired something just as precious: freedom.
Q – We can almost assume you are a sceptic in love. Eliza, like other characters, is not exactly the young damsel swept away by love. In your books love is never perfect but it is rather a path to emancipation. Eliza, in fact, ends without the man she was chasing after, and finds love where she less expected.
A – Love has been important in my life. I am fortunate, I have never been without love. It is also important in my writing, but as you say, love is never perfect, because it isn’t perfect in real life. I wish I could write romance novels with a happy ending!
Q – Still on the topic of love (but not only that), your latest novels, like The Japanese Lover or Long Petal of the Sea seem to pulse as strong as your first stories.
A – Age has not changed the wish for love in my life or the enthusiasm to write about it in my books. Why would it? I know that love and passion are possible at any age, so in my last three novels I have old lovers.
Q – You have lived most of your life in California, but you write in Spanish. In the book, we can read that (I’m quoting from the Portuguese version): “Language is very important, as it determines the way we think.” Could you let us know more about why you still write in Spanish? Is it the language in which you think?, the language you feel the better?
A – I have lived in English for 32 years but I still dream, count, pray, cook, make love and write only in Spanish. Of course, I need to have a Spanish dictionary on my desk because I often forget words in Spanish that can only remember in English. And vice versa…
Q – The Soul of a Woman is not only a feminist manifest, but also an elegy on growing old. But mainly you go against the current thinking to defend the binary, as you separate very well the way a woman thinks and feels, as opposed to men.
A – I am not against fluid genres, quite the opposite, I defend the right to individuals to define their genre. No need to stick to just two genres. However, when talking about our civilization, it’s necessary to use the terms female and masculine to define values and attitudes. Patriarchy is the prevalent system for political, economic, cultural and religious oppression; for thousands of years it has granted dominion and privileges to the male gender. Feminism is an uprising against male authority. It intends to replace the patriarchy with a system in which the management of the world is shared by men and women in equal numbers and equal terms, in which masculine and feminine values have the same weight in the society. Those values are different.
Q – Aside from female empowerment, your Foundation has also focused on support to the refugees since 2016, mainly in the border between Mexico and the USA.
A – Yes. There is a humanitarian crisis at the USA/Mexican border where thousands of asylum seekers and migrants who have fled the terrible conditions in Central America have gathered. Among them, the most vulnerable are women and children. My foundation tries to help them.
Q – In a book that emphasizes the need for raising awareness, you wrote the last pages in march 2020 during the first confinement, when the whole world was forced to stop. What would you like to add now, considering all we have been living since?
A – I hope the world has learned a tough lesson. This virus has taught us that we are one human family; what happens to one person in a village in China happens to all of us and the only way to defeat this invisible enemy is by a collective global effort. We all live in this fragile planet. We have a common destiny. I hope after the pandemic we will be able to imagine and create a better normalcy, a more inclusive, sustainable, reasonable and compassionate reality.
Q – Finally, do the various poems you have quoted in this book obey a particular criteria (an emotional one, for example)?
A – The poems illustrate some themes in the text. For example, when I explained why feminism is noisy, the poem “Burn” by Miguel Gane, which starts saying “No, quiet you are not prettier,” seemed appropriate.