No dia 6 de agosto chegou às livrarias Epítome de pecados e tentações, o novo livro de Mário de Carvalho, publicado pela Porto Editora, o que, convenhamos, não é de todo inesperado ou surpreendente, uma vez que o autor tem vindo a publicar a um ritmo regular, principalmente desde A Sala Magenta, em 2008, alternando entre a novela, o conto e o romance, mas também passando pelo ensaio com Quem Disser o Contrário É Porque Tem razão em 2014. Mário de Carvalho, um dos autores mais importantes da nossa literatura na contemporaneidade, regressa ao conto.
Originalmente previsto para ser lançado em Março de 2020, conforme consta na ficha técnica, também este livro se viu forçado a alguns meses de confinamento social pelo que só agora lhe é possível ver a luz e dar o ar da sua graça. Pois, se bem que Mário de Carvalho se revele como um escritor prolífico, praticando os mais diversos géneros, e capaz de uma técnica exímia nos mais diversos estilos – do romance histórico à sátira –, é sobretudo pela fina ironia e pela doce crítica que os seus contos se destacam.
Dividido em 3 partes, este livro é constituído por 11 breves narrativas: na primeira parte, poderemos considerar que as duas narrativas são novelas, dada a sua extensão; na segunda parte, temos 8 narrativas mais curtas, contos cuja dimensão varia entre as 8 e a 4 páginas; e na terceira parte, um único conto.
Pode ler-se na contracapa que este é um livro «de pecados que pedem total absolvição», todavia a venialidade do venéreo é, também, substituída por uma certa banalidade do mal, pois estes «Fascínios, inquietações e sobressaltos nas relações entre homens e mulheres» que entretecem as várias narrativas, formando um mosaico de adultério e leviandade, parecem ser mais a norma do que a excepção nos casamentos e nos relacionamentos modernos.
A primeira história
Na primeira história, «Fascínio», reconta-se a sobejamente conhecida história do homem casado, pai de família, que se deixa fascinar por uma mulher, não propriamente mais nova, mas que pouco parece retribuir. Sem hesitações, dir-se-á ainda que esta é também a melhor das histórias desta colectânea.
O «doutor Augusto Costa Reimão, jurista reformado e com trabalhos publicados, de alta, discutida e louvada complexidade, lei e doutrina em matéria notarial» (p. 12) recorda como se enamorou por Vanda Sofia, uma «mulher interessante, sem dúvida» (p. 11), e como a partir daí a sua vida se torna um atropelo conforme no «desdobrar dos dias, ao balcão da leitaria» passa da contemplação ao cumprimento, aos monossílabos, até que o encontro pelas 4 horas da tarde se torna tanto uma rotina como o momento alto do dia. A prosa depurada do autor, em frases ritmadas, onde as palavras brincam com a sua própria musicalidade, em que o coloquial anda de mãos dadas com o erudito, prende-nos logo nas primeiras frases:
«Eu detestava-a em desespero por amá-la demais, o que pouco é dizer. Acrescia o desprezo por mim próprio pela indecisão de renunciar. Sabedor dos azares que na vida acometem os homens, e sempre capaz de esquivança, não cheguei a prever que poderia precipitar-me neste. Vi-me capturado, manietado, enrodilhado, sem antever que o dia seguinte viesse a ser diverso. A renovada e sempre desmentida esperança em pequenas vitórias revelava-se uma ilusão, a amargar mais duro quando a sós, alheado já o encanto e distante o feitiço.» (p. 11)
Resta saber se esta crua lucidez com que o narrador nos conta a sua cegueira advém da sua avançada idade, enquanto «alheado ancião» (p. 12), que permite colocar as amarguras e desilusões na devida perspectiva distanciada, ou se, quando se sabia prestes a entrar nesse Jardim das Delícias, tinha já a noção que seria uma efémera estada… Note-se, neste sentido, a forma como é descrita a casa de Vanda Sofia, quando ele entra nela pela primeira vez: «Pareceu-me o Éden, um refúgio côncavo e fagueiro de tranquilidade e bem-estar, desafiando o tumulto e a lufa-lufa que são o quotidiano de todos nós.» (p. 18) Porque o amor, e a paixão, e a subsequente ilusão, sobrevive, sobretudo, pela sua condição de romper com o real e o banal dos dias. E é nesse Éden que um homem se deita a perder e a pecar.
Fina ironia numa prosa depurada
Apesar do enlevo em que a prosa depurada do autor nos prende, a fina ironia está sempre presente, a começar pelo apelido do protagonista, Reimão (e os aumentativos nos nomes de homens serão uma constante neste livro, a condizer com machão, engatatão, …), e pelo nome de Vanda Sofia (nome duplo e sonoramente desconcertante). Ou até pela forma como o nosso herói descreve a sua vida: «Tinha a minha Aida em casa, uma nova amante ocasional no subúrbio e, sem me considerar esgotado, não estava a ver-me em renque de coleccionador.» (p. 12)
Mas o caçador torna-se a presa, armado de uma incompetente lucidez que lhe permite perceber como é manietado num jogo de sedução, conforme a sua amada (a começar pela noite em que o convida para sua casa mas não lhe explica que era na verdade para um serão social composto por mais pessoas) se regala no poder que a obsessão dele por ela lhe confere:
«Vanda Sofia nunca telefonava. Preferia atender-me, lidar com a minha ansiedade e conceder-me uma noite ou outra, entre as muitas que tinha «ocupadas».» (p. 30)
E é nessa corda-bamba que o doutor Reimão se deixa manter, conforme a sua vida desmorona, ao ponto de fazer a velha figura de contar tudo em lágrimas à sua mulher (Aida é «discreta» e «com um sofisticado sentido do ridículo» (p. 17) assim que ela revela já ter percebido:
«- Vamos, vamos, meu caro. Isto já foi longe demais.» (p. 28)
O doutor Reimão, outrora este fogoso Don Juan, está agora recluso numa instituição a que “foi parar”, onde tenta negar as evidências: «Continuo a chamar velhotes aos circunstantes. Nunca olho para mim. Indiferença para com os espelhos, entranhado hábito viril. Aquela mulher que também come sozinha, na outra extrema da sala, reposiciona a dentadura com as mãos sob o maxilar, a cada duas colheradas.» (p. 26) Talvez por isso mesmo, pela sordidez e pela fatalidade da idade, de «Peles tremidas, lassas, rugas, ossos deformados», «mumificado em vida» (p. 24), o doutor Reimão queira recontar-nos a sua sempiterna memória de Vanda Sofia – «Rememorar estes passos é sofrimento que mistura fascínio, prazer e raiva.» (p. 31) – ainda que, paradoxalmente, tenha a nítida consciência de que, se ela ainda fosse viva, «não seria a bela arrebatadora dos meus melhores tempos, mas um exemplar degradado, tanto ou mais curvado e diminuído do que a senhora na minha frente.» (p. 24).
Leitura global
«Hotel Azul», a segunda história do livro pode ser considerada como outra novela, dada a sua extensão, que se reparte ainda entre várias personagens e intenta narrar um único dia nas suas vidas. O ponto de vista é agora, principalmente, o da mulher. Maria das Mercês, viúva, «Ainda não ia nos sessenta, selecta magreza, cabelos grisalhos, cuidados, pelos ombros, olhos pardos deambulando por nenhures» (p. 47), em tempos professora de História no secundário.
«Dois filhos, duas noras, moradia em Lisboa, dois montes no Sul, contas avantajadas, dívidas, dúvidas, despiques, picardias, equívocos, um tremedal de contrariedades, maçadorias de rico, que não matam mas moem.» (p. 37)
Maria das Mercês atinge o cansaço extremo quando decide que está na altura de regressar ao “seu” Hotel Azul, onde precisa de um quarto que seja seu por um tempo: «Paz molenga, caverna de sumptuosidade, silêncio, soberania máxima, o mundo que fosse à vida.» (p. 47)
Estabelece-se aqui, nesta fuga para um quarto estrangeiro e impessoal, que sirva de refúgio, um paralelo com Bártolo, que foge à filha única.
E nesse escape ao real na vida de Maria das Mercês participa também um súbito, imprevisto e calmo fascínio por Raul, o rapaz que faz as vezes de recepcionista de hotel e que lê a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides. A narrativa, no final, assume um rápido desenlace:
«Arrumava agora as últimas roupas. Ah, se as suas filhas soubessem, crucificavam a mãe. Tinha levado para a cama um rapazito que, afinal, desejara desde o primeiro momento. Inesquecíveis instantes de intensa suavidade. Não queria correr o risco de repetir. Há coisas que só se fazem uma vez na vida. (…)
Passada a festa, esquece-se o santo, como diz o povo.» (p. 67)
Nos restantes contos, o ponto de vista que se adopta será, principalmente, o da mulher. E em várias das protagonistas femininas destas histórias pecaminosas aquilo que num homem atrai uma mulher é inversamente proporcional à atracção física que as mulheres exercem nos homens; a atracção é espoletada sobretudo pelo intelectual ou pela ingenuidade: «os homens gostam pouco de conversar. Podem ter o resto virado para fora, mas o cérebro virado para dentro.» (p. 114)
Cada conto é uma pequena conta num rosário de histórias perladas de subtileza, de labor da linguagem, de crítica mordaz à nossa sociedade, por um olhar arguto, benevolente, sábio, sem sobranceria; distanciado, quem sabe?, porque experiente.
Breve nota biográfica
Mário de Carvalho nasceu em Lisboa em 1944. Licenciou-se em Direito e cumpria serviço militar quando foi preso. Ligado aos meios da resistência contra o salazarismo, foi condenado a dois anos de cadeia, tendo de se exilar após cumprir a maior parte da pena. Depois do 25 de Abril, em que se envolveu intensamente, exerceu advocacia em Lisboa. O seu primeiro livro, Contos da Sétima Esfera, causou surpresa pela sua atmosfera fantástica.
Nas diversas modalidades que pratica, foram-lhe atribuídos vários dos principais prémios literários portugueses: Grande Prémio de Romance e Novela (Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde), Conto e Teatro da Associação Portuguesa de Escritores (APE), prémios do Pen Clube Português, Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco, Prémio Fernando Namora, Prémio Vergílio Ferreira em 2008 (pelo conjunto da sua obra), e o prémio internacional Pégaso de Literatura. Em junho deste ano foi distinguido com o Grande Prémio de Crónica e Dispersos Literários da APE pela obra O que ouvi na barrica das maçãs.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de agosto)
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