A não pronúncia de José Sócrates para ir a julgamento por corrupção, como se soube esta sexta-feira, será uma “honra para a democracia”? Em maio de 2018, quando Fernando Negrão, do PSD, fez a primeira pergunta que se ouviu no hemiciclo sobre a Operação Marquês, António Costa abriu uma exceção e respondeu, com originalidade, não como chefe do Governo, mas como cidadão comum, estabelecendo ali a nova doutrina a ser seguida pelo PS: “Se obviamente aqueles factos forem provados, constituem uma desonra para a democracia e se não vierem a ser provados é a boa demonstração que o sistema de justiça funciona, o que é uma honra para a nossa democracia”.
Ora, dois anos e meio depois daquela frase, o sistema de justiça funcionou, apesar de o trabalho do Ministério Público ter sido completamente arrasado ao longo da tarde desta sexta-feira pelo juiz de instrução Ivo Rosa: os procuradores fizeram a acusação, as defesas dos 28 arguidos pediram a instrução do processo – uma espécie de pré-julgamento em que se avalia a solidez da acusação e da prova – e, depois de meses a apreciar o caso, Ivo Rosa deixou cair os principais crimes contra José Sócrates, como a corrupção, e só manteve três crimes de branqueamento de capitais e três de falsificação de documentos (com o seu amigo Carlos Santos Silva). Apesar de não pronunciar Sócrates por corrupção, o juiz admitiu a existência de indícios de “corrupção sem demonstração de ato concreto” (que não estava na acusação), mas esse crime, acrescentou, está prescrito.
António Costa, questionado esta sexta-feira pelos jornalistas, remeteu para o que disse há seis anos sobre o caso, e não para a frase sobre a desonra que proferiu no Parlamento. Voltemos a essas palavras de Costa: como a justiça não deu os factos mais graves como provados, não se pode dizer que a decisão seja “uma desonra para a democracia”, pois não há um ex-primeiro-ministro condenado por corrupção; todavia, como o processo não ficará por aqui – porque o MP vai recorrer para o Tribunal da Relação -, António Costa poderá, assim, continuar a afirmar que o sistema de justiça está a funcionar, e que isso é uma “honra para a democracia”. Por enquanto. A não ser que o líder socialista surja agora com um novo olhar sobre o caso.
“PRESTAR CONTAS POLÍTICAS NÃO É O MESMO QUE PRESTAR CONTAS À JUSTIÇA”
Mas as intervenções do secretário-geral socialista sobre o processo Sócrates têm sido esporádicas, cirúrgicas e cuidadosas. Marcado pelo clima emotivo que mobilizou o PS contra a justiça durante o caso Casa Pia, Anónio Costa tentou sempre blindar o partido e o Governo de forma pragmática – a sobrevivência do PS podia estar em causa, chegou a dizer um alto dirigente ao Expresso -, mas nunca fez uma apreciação política da vida financeira do homem de quem foi número dois. Apesar de ter destruído todos os fundamentos da acusação, o próprio juiz de instrução fez essa separação de águas e disse na leitura da decisão instrutória que “prestar contas em termos políticos não é a mesma coisa do que prestar contas à justiça”, outra forma de dizer: “À política o que é da política e à justiça o que é da justiça”. Mas com mais enfoque no “à política o que é da política”.
No entanto, nem o PS nem António Costa fizeram até hoje uma apreciação apenas política daquilo que o antigo líder não desmente: por exemplo, os empréstimos de milhões, o uso de uma conta em nome de um amigo, as entregas de dinheiro vivo, ou as conversas em código.
COSTA NUNCA DESCONFIOU
O mais longe a que chegou foi quando se juntou aos antigos companheiros de comentário: “Tenho certeza de que no PS as pessoas não conheciam os factos que têm vindo a público”, disse numa edição especial da Quadratura do Círculo antes das legislativas de 2019. Foi o mais perto que esteve de sair dos limites auto-impostos para comentar o caso: “Nos dois anos em que fui ministro de José Sócrates nunca tive nenhum sinal que me levantasse a menor suspeita sobre o seu comportamento, nem depois disso tive qualquer suspeita, até ao momento em que começou a haver as notícias que todos conhecemos.”
Aqui, António Costa deixou implícito um juízo moral em relação ao seu antigo líder mas logo atalhou a dizer que não fará “o julgamento popular do engenheiro José Sócrates”, e “se alguma vez tiver alguma suspeita de alguma situação de corrupção dentro do PS ou fora do PS”, cumprirá “o que é dever cívico de qualquer um: denunciar às autoridades”. E voltou à linha estabelecida: o partido retirará “as ilações que tiver a retirar quando forem concluídos os processos judiciais”. E ainda faltam anos até toda a tramitação judicial ser concluída. O “Observador” chegou a fazer contas e apontou para um horizonte tão longínquo como 2036.
A VERGONHA E A RAIVA
No partido, no máximo, altos dirigentes como Carlos César, João Galamba ou Augusto Santos Silva, falaram em “vergonha”, “tristeza”, “revolta”, “traição” ou “raiva” – na mesma semana da frase de Costa no Parlamento que abre este texto. Mas com um senão, sempre com esta ressalva: isto eram emoções futuras, embora ditas no presente, justificadas caso as acusações se provassem na justiça. Mesmo estando envolvida uma apreciação política do momento, estas posições nunca deixaram de estar indexadas a uma condenação judicial. Todas estas reações, datadas do início de maio de 2018, foram motivadas pelo caso de Manuel Pinho, ex-ministro da Economia, que alegadamente continuara a ser pago por Ricardo Salgado enquanto esteve no Governo.
Para José Sócrates isso chegou. Para ele, a salvaguarda “caso se venha a provar” dos seus ex-camaradas e ex-ministros, era apenas uma formalidade envolvida em hipocrisia. O partido não o defendia como no Brasil o PT defendeu Lula ou como o PS se atravessou por Paulo Pedroso no início do século. Um dia depois de ouvir estes comentários, decidiu sair do partido: “Ultrapassa os limites do que é aceitável no convívio pessoal e político. Considero, por isso, ter chegado o momento de pôr fim a este embaraço mútuo”, escreveu num artigo publicado no “Jornal de Notícias”.
António Costa, em visita oficial ao Canadá, respondia-lhe com frieza: “É uma decisão pessoal que tenho de respeitar, fico surpreendido, não há uma mudança da direção do PS do que temos dito. À política o que é da política e à justiça o que é da justiça. Não mudou, temos todos os motivos para confiar no sistema de justiça, estado de direito. Respeitar a independência da investigação e a presunção da inocência”.
OS ATAQUES DO LÍDER DO PS À HISTÓRIA DO PS
Mas a relação entre os dois homens já tinha acabado há muito. Costa chegou a convidar Sócrates para a inauguração do Túnel do Marão em 2016, mas nem por isso se cruzou com ele na cerimónia. E havia de azedar ainda mais durante a campanha eleitoral de 2019, aqui sim, por motivos puramente políticos. Numa entrevista televisiva, para afastar a ideia de pedir uma maioria absoluta aos eleitores, disse que “os portugueses têm má memória das maiorias absolutas, quer as do PSD quer a do PS”. Não explicou porquê, mas ao longo da sua governação Costa tentou sempre afastar-se da pesada herança reputacional do último Governo de Sócrates por causa do resgate e da bancarrota. Mas esta, o ‘animal feroz’ não deixou passar e respondeu.
Irritado, Sócrates escreveu um artigo no Expresso a dizer que “começa a ser insuportável assistir, sem reagir, aos ataques que o líder do PS faz à história do Partido Socialista e aos anteriores governos socialistas.” E acusou Costa de se juntar “ao discurso de todos os outros partidos que têm óbvio interesse político em fazê-lo”, para lembrar que ele também participou nesse Governo maioritário: “Nunca pensei que as coisas chegassem a este ponto. Nunca me ocorreu vir a encontrar-me na desconfortável situação de ter de recordar a alguém que o Governo que agora maldiz foi, afinal, um Governo no qual participou”. Sentia-se injustiçado: “Nenhum apoio pedi à direção do PS, também nunca esperei que esta me atacasse de forma tão injusta”.
Na entrevista seguinte, uns dias depois, Costa reagiria de forma cândida na SIC: “O que eu disse é que [os portugueses] não gostam de maiorias, justa ou injustamente. É a percepção que tenho, de várias sondagens que vi.” E isso não é uma crítica a Sócrates? “Não me passou isso pela cabeça…”
A VERDADE DELE: COSTA NUNCA REVELOU QUAL ERA A SUA IDEIA DESSA VERDADE
Amigos, amigos, processos judiciais à parte. Essa foi a filosofia que começou por vigorar no PS em relação à investigação e prisão de José Sócrates, com o mantra criado por António Costa. Ele estava prestes a começar o congresso que o havia de entronizar como líder, a 22 de novembro de 2014 – depois de vencer as diretas contra António José Seguro – quando Sócrates foi preso no aeroporto, em direto, com as televisões a filmar. Foi rápido a reagir para travar as tentações, e mandou um SMS geral aos socialistas: “Caras e caros camaradas, estamos todos por certo chocados com a notícia da detenção de José Sócrates. Os sentimentos de solidariedade amizade pessoais não devem confundir a ação política do PS.” Foi assim que tudo começou.
Semanas depois, Costa havia de visitar o próprio Sócrates na prisão, uma visita rápida, que no fim deixaria em vigor a frase inaugural, que encerrava todo um programa, um cordão sanitário reforçado depois do SMS preventivo: “A personalidade dele é conhecida de todos. Ele é um lutador e luta por aquilo que acredita ser a sua verdade”. Agora, José Sócrates poderá dizer que a justiça reconheceu a “sua verdade” e certamente continuará “a luta por aquilo em que acredita”, porque o processo não ficará por aqui. “Aquilo que eu digo é verdade, por isso vou-me defender”, disse à saída do tribunal. Que dirá agora António Costa sobre a verdade de Sócrates?
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