São os verdadeiros ‘camaleões’ da pandemia – os restaurantes representam o sector que mais teve de se adaptar e lidar no terreno com alterações sucessivas associadas ao evoluir da situação sanitária e que mexeram diretamente, muitas vezes de forma profunda, com a operação.
Clientes obrigados a apresentar certificado de vacina à entrada, e a usar máscaras à exceção dos períodos em que não estão a comer, mesas com limite de pessoas em número sempre variável, pratos e talheres que tinham de ser descartáveis e pedidos de menus por telemóvel são apenas alguns exemplos de regras voláteis às quais os restaurantes tiveram de se ajustar ao longo do último ano e meio.
Numa fase terminal da covid-19, com a larga maioria da população já vacinada contra o vírus, que lições trouxe a pandemia aos restaurantes, e que tendências irão ficar para os próximos anos? “Estruturalmente, não haverá uma ruptura total em relação ao que era a restauração antes da pandemia, ou uma mudança de 180 graus ao nível da sua utilização”, antecipa Eduardo Abreu, sócio da Neoturis, consultora portuguesa especializada em turismo. A transição será provavelmente feita com a manutenção de medidas que devem ir perdendo peso, como a desinfeção de mesas antes de cada utilização e a disponibilização de álcool-gel.
No entanto, há algumas ruturas que vão ficar: vai haver mais comida para fora, menos almoços e mais jantares, o avanço digital é uma realidade e vai refletir-se também no cuidado com o empratamento, a pensar nas redes sociais. E os ‘buffets’ e restaurantes mais pequenos? Os especialistas ouvidos pelo Expresso acham que se vão manter, ainda que a tendência seja de maior exigência de qualidade (e de comida mais saudável).
1 – ‘TAKE AWAY’ E ENTREGAS AO DOMICÍLIO PASSAM A SER REGRA, MESMO EM RESTAURANTES ‘GOURMET’
Até à chegada do vírus, eram raros os restaurantes no país onde se podia comprar, de forma organizada, comida para consumir em casa – o que exige cozinhas equipadas para esse fim, pessoal treinado nestes procedimentos e embalagens especiais. Era impensável fazê-lo em restaurantes ‘gourmet’ ou, por exemplo, em estabelecimentos especializados em peixe fresco ou marisco.
O chef Vítor Sobral lançou diversos restaurantes durante a pandemia, como o Ôtro, na Rua Rogrigues Sampaio em Lisboa, que abriu em outubro de 2020. Foto D.R. Jorge Simão
Embora já se falasse no ‘take away’ como tendência futura para o sector, “havia muita inércia a dar esse salto, e muita restauração não estava focada nessa área”, constata Eduardo Abreu, frisando que “depois de mais de um ano e meio de experiência, os restaurantes irão manter esse leque de oferta, que representa uma receita adicional na sua atividade”.
O chef Vítor Sobral não tem dúvidas de que o ‘take away’ é uma tendência que veio para ficar, e os tempos de pandemia trouxeram “um salto qualitativo grande” na forma rápida como os restaurantes se organizaram neste sentido, “a provar que as pessoas podem ter a comida, com todas as condições, em sua casa”, o que envolve procedimentos específicos na cozinha e “na própria forma de transportar, ou de embalar a comida”.
Os restaurantes foram sujeitos a uma série de regras durante a covid, e que trouxeram alterações profundas à sua operação. Foto D.R. Manuel de Almeida
Neste campo, destaca-se a parceria que passou a ser norma entre a generalidade dos restaurantes nacionais com plataformas especializadas para entrega de comida, como a Uber Eats ou a Glovo.
A tendência de “trabalho à distância” também se irá acentuar, segundo prevê o ‘chef’ Vítor Sobral, o que para os restaurantes significará “menos almoços e mais jantares” comparativamente com o que havia no período pré-pandemia.
2 – MAIS ESPLANADAS NOS PRÓXIMOS ANOS, E COM MELHOR QUALIDADE
Por razões sanitárias, a pandemia trouxe a necessidade dos restaurantes terem mais espaços exteriores para os clientes não estarem tão concentrados e usufruirem de ar livre, minimizando riscos de contaminação.
Os espaços para comer ao ar livre tenderão a ser mais procurados, segundo os especialistas. Foto D.R. Eduardo Costa
Muitos municípios chegaram-se à frente, logo na fase inicial, isentando de taxas e dando carta branca aos estabelecimentos para distribuírem as mesas pelos passeios das ruas. O destaque vai para a Câmara de Lisboa, com um projeto para incentivar as esplanadas na cidade até no inverno, o período mais frio.
“As esplanadas em Portugal foram sempre um parente relativamente pobre ao nível da restauração”, faz notar o consultor da Neoturis, constatando que a covid acelerou “uma aposta no serviço ao ar livre, e com uma maior qualidade das esplanadas, a nível de mobiliário, segurança, etc”. “Foram feitas um pouco à pressa, mas o investimento nas esplanadas veio para ficar, e ainda bem”, sublinha.
“As esplanadas em Portugal foram sempre um parente relativamente pobre na restauração, e passou a haver maior investimento em mobiliário de qualidade e no serviço ao ar livre, tendência que veio para ficar”
“As esplanadas vieram para ficar”, concorda o ‘chef’ Vítor Sobral: “Estou com um projeto grande em Cascais, para abrir em março do ano que vem, e a esplanada foi uma das principais preocupações”.
3 – DIGITALIZAÇÃO ACELERA EM TODAS AS FRENTES (RESERVAS, ENCOMENDAS E PAGAMENTOS)
Uma das maiores tendências identificadas pelo consultor Eduardo Abreu, e que já se verificava antes da pandemia, está no “acelerar o recurso a plataformas digitais para facilitar encomendas, promoções e tudo o que possa ser transmitido ao público, área em que foi notório um investimento reforçado”.
“Muitos restaurantes nem tinham sequer ‘site’ e começaram a manter, também por essa via, uma comunicação mais presente com os clientes nas redes sociais”, constata o especialista, lembrando que a digitalização mobilizou “as maiores mudanças e os maiores apoios” aos restaurantes, que enfrentaram fases em que tinham de ter menus digitais e só podiam servir à mesa após a comida ter sido pedida por uma aplicação em telemóvel, com vista a haver o mínimo de contacto com os empregados.
Os restaurantes tiveram de gerir de forma mais criteriosa o processo de reserva de mesa. Foto D.R. Ramon De La Rocha
Reservas prévias de mesa, plataformas para providenciar ‘take away’ ou ‘delivery’, entre outros processos digitais que foram implementados nos restaurantes, tendem a ficar como um novo padrão.
“Tudo o que foi aprendido um pouco à pressa durante a pandemia na área da digitalização irá deixar as suas raízes para os próximos anos”, destaca o consultor da Neoturis.
No geral, as reservas antecipadas ajudaram a trazer aos restaurantes uma melhor organização, mas o ‘chef’ Vítor Sobral enfatiza que deverá haver lugar a alguns ajustes: “Quando se faz uma reserva deve-se deixar o número de cartão de crédito, porque o que acontece é que muitas pessoas reservam e não aparecem, e a pandemia não melhorou, só piorou esta situação”.
4 – ‘BUFFETS’ VÃO RESISTIR À PANDEMIA
Chegou a pensar-se que, com a covid, ficaria em xeque uma das modalidades mais populares de servir comida em restaurantes ou hotéis – os ‘buffets’ -, que foram proibidos em diversos períodos da pandemia, por envolverem aglomerados de pessoas a servirem-se em conjunto.
Os ‘buffets’ mantêm-se e estão a conseguir resistir, tendo enfrentado ao longo deste tempo diversas vicissitudes e regras, como a criação de percursos definidos para a circulação das pessoas, ou álcool-gel em abundância para desinfeção constante das mãos. Houve ainda fases em que só um empregado do estabelecimento era autorizado a servir a comida que era escolhida pelas pessoas.
“Não vemos o fim dos ‘buffets’ como uma tendência, até porque são uma componente importante para hotéis de grandes dimensões, em alternativa a servir milhares de pequenos almoços ‘à la carte'”, salienta o consultor da Neoturis, lembrando que no caso dos ‘resorts’ “os ‘buffets’ fazem parte da própria experiência de férias”.
Nos próximos tempos poderão manter-se algumas restrições de acesso aos ‘buffets’, nomeadamente a nível de percursos, dependendo do critério adotado por cada unidade. “Mas tendencialmente prevê-se que volte a ser uma experiência próxima do que existia anteriormente”, refere Eduardo Abreu.
Chegou a pensar-se que poderia ser o seu fim, mas os ‘buffets’ mantêm-se uma modalidade popular de servir comida. Foto D.R. City Church Christchurch/Unsplash
O acesso aos ‘buffets’ é precisamente uma das áreas que tem estado mais na mira dos investidores em novos projetos turísticos. “Em grandes ‘resorts’ e nos novos hotéis que estão em fase de projeto, o desenho dos circuitos para os clientes e as facilidades de limpeza são algumas das preocupações”, nota o especialista que tem acompanhado novos projetos.
“Se ocorrer uma nova pandemia ou algo deste género, os investidores querem certificar-se de que o projeto tem capacidade de dar resposta a uma situação similar, pensando em circuitos de forma mais detalhada no caso de haver uma situação de risco sem terem de fazer uma ginástica brutal na sua operação”, aponta o consultor.
5 – RESTAURANTES PEQUENOS VÃO MANTER-SE? SIM, SE FOREM BONS
A necessidade de garantir distanciamento social foi crítica ao longo da covid e o total de metros quadrados dos estabelecimentos foi essencial para determinar quantos clientes podiam receber em simultâneo. Para pequenos restaurantes e tascas, em muitos casos ‘gourmet’, inseridos em espaços apertados, o que se perfila?
“Se forem bons, não há razões para que pequenos restaurantes com um balcão e três ou quatro mesas deixem de ter procura”, garante o especialista da Neoturis.
É a qualidade da comida e do serviço que irá prevalecer na sobrevivência dos restaurantes, e não o tamanho dos espaços. Foto D.R. Eduardo Costa
“É normal que durante alguns tempos haja uma percentagem da população que mantenha preocupações a nível de distanciamento, mas não será a maioria, e logo que a pandemia fique controlada e e as coisas voltarem a uma certa normalidade, as pessoas tenderão a esquecer o que foi este ano e meio”, aponta ainda Eduardo Abreu.
Comer ao balcão, com desconhecidos ao lado, é algo que não tem necessariamente os dias contados, mas a verdade é que o volume em área é cada vez mais valorizado nos novos projetos. “Os restaurantes que vão abrindo já não têm tanto o perfil dos 20 metros quadrados, e estão a evoluír para espaços maiores e com maior sofisticação de conceito”, indica o consultor.
Segundo o ‘chef’ Vítor Sobral, “se há bons restaurantes apenas com um balcão e em que as pessoas pagam 200 euros, estes vão sobreviver porque o seu negócio é darem um excelente serviço”.
Já em relação às tasquinhas, o ‘chef’ considera que “infelizmente muitas vão desaparecer”, e não é por uma questão de espaço exíguo. “Há muitos restaurantes em que a sobrevivência dependia de não pagarem impostos e, para os que não estão organizados de outra forma, a tendência é morrer”, faz notar.
6 – PRATOS CADA VEZ MAIS PENSADOS PARA SEREM PARTILHADOS NAS REDES SOCIAIS
Os olhos também comem, como diz o ditado popular. A tendência de ‘postar’ comida no Instagram ou no Facebook já era forte antes de aparecer a covid e há longos anos que os ‘chefs’ se esmeram em criações gastronómicas de forte impacto visual, também a pensar nas redes sociais.
A comida saiu valorizada durante todo o período da pandemia – quer durante os longos períodos de confinamento em que as pessoas tinham de ficar em casa, quer nas alturas em que já podiam sair e estavam ansiosas por frequentar restaurantes.
“Cada vez mais pessoas fazem ‘posts’ de comida nas redes sociais, os restaurantes já perceberam que o empratamento pode ajudar a vender, além de terem mobílias, pratos e talheres diferenciados ou coloridos”, nota o consultor Eduardo Abreu, frisando que o tema se associa à tendência de digitalização dos restaurantes.
Há cada vez mais ‘posts’ de comida no Instagram, mas segundo os ‘chefs’ isso não deverá desviar o foco de confecionar pratos com verdadeiro sabor e qualidade. Foto D.R. Jennifer Griffin/Unsplash
“Não há volta a dar: a importância das redes sociais e das plataformas vai prevalecer e aumentar”, considera o ‘chef’ Vítor Sobral, pondo a tónica em “criar espaços que sejam possíveis de fotografar e deem boas imagens no Instagram”.
Mas o foco dos cozinheiros deverá estar centrado na qualidade e sabor da comida, não só no facto de ser fotogénica, conforme frisa Vítor Sobral. “‘Postar’ coisas no Instagram é importante para os restaurantes, mas acredito mais no boca a boca, das pessoas a dizer aos amigos que gostaram realmente da comida”, salienta.
7 – COMIDA E INGREDIENTES SAUDÁVEIS VÃO GANHAR IMPORTÂNCIA
Se é certo que a pandemia veio chamar a atenção do público para a importância de uma alimentação saudável, capaz de contribuir para o reforço do sistema imunitário e de organismos mais resistentes a doenças, não é líquido que esta seja uma tendência de procura que tenha ficado firme com a covid-19 para o futuro a curto prazo nos restaurantes.
O ‘chef’ Vítor Sobral deixa expressas algumas dúvidas a este respeito, apesar de haver um consenso generalizado de que as pessoas se preocuparam mais com a alimentação durante o surto sanitário.
“Quando estivemos fechados e confinados, o que mais vendíamos eram coisas fritas. Muitos pedidos das pessoas eram de frango frito com batata frita, coisas que eu nunca faria no dia a dia no restaurante”, conta o ‘chef’.
À margem da pandemia, o futuro dos restaurantes também passa pela reflexão séria sobre uma alimentação menos industrializada, segundo aponta o ‘chef’ Vítor Sobral. Foto D.R. Eduardo Costa
Independentemente da pandemia, o ‘chef’ Vítor Sobral frisa que os restaurantes terão de assumir uma reflexão séria para o futuro em relação à alimentação.
“Não podemos continuar a comer coisas industrializadas, e que passem por processos químicos. É melhor comer carne boa uma vez por semana do que comer coisas processadas e industrializadas, o que também se aplica a produtos vegan”, aponta o ‘chef’. “Tenho uma padaria em que o pão é feito com fermento natural, em vez de ser fermentado quimicamente à pressa”.
“Hoje fala-se muito em produção biológica, mas vejo poucas pessoas preocupadas em despender mais a comprar frangos do campo”, exemplifica.
Combater o desperdício alimentar é outro dos desafios que se colocam à restauração e às criações gastronómicas dos ‘chefs’, segundo Vítor Sobral. “Se se abate um animal não é para comer só o bife do lombo e da vazia, tem de se aproveitar toda a carne”, faz notar.
A saúde dos restaurantes no pós-covid também passa muito pela valorização dos seus trabalhadores, a forma como são pagos e a perspetiva que lhes dá de terem uma carreira. “Há um assunto de que quase ninguém fala, e deviam perguntar às equipas e aos ‘chefs’ como se sentiram tratados na pandemia”, refere Vítor Sobral, enfatizando haver “uma coisa horrível: muitas pessoas na restauração estão no fundo de desemprego, a ganhar quase o mesmo como se estivessem a trabalhar”.
“Paga-se muito mal às pessoas na restauração”, conclui o ‘chef’. “Espero que a pandemia ajude a resolver parte do problema, e que as pessoas que trabalham no sector possam ter uma vida melhor”. Apesar da crise ter deixado um rasto de falências, Vítor Sobral admite que “os apoios foram essenciais para a sobrevivência”: “Foi a primeira vez que senti que valeu a pena pagar impostos ao longo destes anos todos”, declara.
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