Somos filhos, e só depois haveríamos de ser filhas, da Revolução Francesa de 1789, cujos três valores são, ainda, aprendidos na Escola: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. O primeiro é um grito aturdido, o segundo uma aspiração actual, o terceiro não se pronuncia. Como qualquer grito, e sendo humano adquire proporções de angústia inapelável, dá-se um eco a que os demais seres humanos devem dar resposta, nomeadamente, acolhendo o aflito e tranquilizando-o: somos iguais. Perplexo, o aflito vê-se nos braços do diferente e este vê-se a braços com o estranho: na alteridade, portanto, começa a Fraternidade.
A Democracia nasce aqui: numa Liberdade que é braço estendido, numa Igualdade que é justiça social, numa Fraternidade que é cura individual-colectiva. Que se diga contemporaneamente que a democracia é laica e republicana explica, por um lado, a dificuldade em pronunciar a palavra Fraternidade, por outro, o longo caminho que as filhas tiveram de percorrer. O assunto não deve descurar-se, porque: a cidadania, chapéu que abriga do sol e da chuva na democracia, foi o do cidadão por muito tempo, autónomo e soberano, senhor de si, e apontando a vulnerabilidade à mulher, que tornou bode expiatório dos seus pecados. Portanto, cabe questionar: o que é uma cidadã? Autónoma e soberana, senhora de si? Decalque do cidadão? É que não podemos simplesmente ignorar as posições fundacionais, por um lado, e, por outro, entender a vulnerabilidade como uma questão histórica, já que é essencialmente constitutiva do humano: cidadão e cidadã, depois. E se nos rebelamos contra a asserção de que “um homem não chora”, poderemos em consciência julgar uma mulher que derrama lágrimas?
Portanto, a República, além de ter sido construída sem as mulheres, foi-o contra elas, numa dupla estratégia: afastando-as efectivamente – legal e politicamente, e extirpando do cidadão a vulnerabilidade constitutiva enquanto humano. Nesta “origem” fendida manifestamente pouco confortável, em tempos actuais de denúncia do que se intitula ser um pensamento binário, sintetiza-se uma ponderação de forças que nos afecta como colectivo, e encarna nos sujeitos singulares. O pendor corporativo da República e a vocação argumentativa da Democracia estão, assim, a nu, precisamente por esta “origem” fendida: daquele chega-nos aquilo a que chamo a dialéctica triste – que é a das trincheiras: homem versus mulher, branco versus negro, alto versus baixo, magro versus gordo, etc; daquela surge-nos uma vigília incansável, que não sintetiza pelos opostos, mas que é condição para traçar os percursos, para promover as possibilidades, para saborear as palavras, para medir as distâncias, para criar os horizontes, para passar os testemunhos.
Por tal, não é a Democracia que deve questionar-se enquanto “sistema” político, mas sim a República aquela que deve ser alvo de uma constante arqueologia crítica: porque a Democracia é a “casa” que devemos permanentemente criar e a República um convite à educação permanente com a alteridade, ou seja, para a diferença. A Democracia não começou exactamente na Grécia Antiga, nem mesmo no horizonte da republicana Revolução Francesa; a Democracia é muito nova, tendo nascido quando integrou as Mulheres, que não são uma das minorias a quem se reconheçam os mesmos direitos partilháveis por grupos sucessivamente mais alargados, mas quem engendra comunalmente com os Homens, logo, as Mulheres e os Homens são os fertilizadores da sociedade. Sendo o par Feminino/Masculino metafísico e transcendental, a Democracia deveria prevalecer como horizonte infinito e interior do Mundo, confundindo-se com o ar que respiramos.
José Mattoso escreveu-o há bastante tempo, no que à História respeita, ou seja, em relação ao estudo do passado para que se fortaleça um presente e se criem horizontes de futuro: que a dialéctica do Feminino/Masculino obrigará a reescrever tudo, não se podendo cingir a meros apêndices que dão conta da especificidade da experiência relativa às mulheres. Por outro lado, o simples reconhecimento tão recente desta dialéctica prova-nos que permanecemos numa espécie de infância do Mundo e da Humanidade, o que pode parecer paradoxal e incrédulo, sobretudo no momento grave e solene que estamos a viver planetariamente. O olhar, todavia, que se dirige a uma questão histórica, pese embora preservando um pressuposto de rigor factual, é fundamental para que nos possamos reinventar, sempre.
Cláudia Ferreira
(Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva)
Quem é Cláudia Ferreira
Cláudia Ferreira é natural de Coimbra. Licenciada em História/var. História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, tendo frequentado Estética e Filosofia da Arte na FLUCL, em Lisboa, sendo nessa mesma cidade que viria a concluir o mestrado em Estudos sobre a Mulher – As Mulheres na Sociedade e na Cultura, concretamente, na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, para, em 2019, obter o doutoramento em Estudos Contemporâneos na Universidade de Coimbra com a tese intitulada O Rosto das Horas: do feminino e do masculino, com a arte. É investigadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX – CEIS20 e desempenha as funções de Técnica Superior na Câmara Municipal de Condeixa.