Este Verão foi-me lançado um desafio profissional inaudito! Escrever um texto para o catálogo de uma exposição de artes plásticas, com a particularidade de o redigir a partir da minha própria experiência ao pernoitar uma noite na galeria de arte, na instalação “Sala da Memória”, criada pelos artistas Mariana Caló e Francisco Queimadela. Actualmente a viver no Porto, Marina Caló e Francisco Queimadela trabalham como dupla artística desde 2010. Corpo Radial―assim se intitula a exposição que tem a curadoria de Susana Ventura ―inaugurou dia 30 de Julho e estará presente na Galeria da Boa Vista em Lisboa até dia 1 de Novembro.
Abracei este projecto com entusiasmo! Abomino a experiência tão frequente nos museus de arte contemporânea de o acesso à obra ser mediado por uma espécie de manual de instruções. Como se o homem actual fosse incapaz de aceder à arte do seu tempo! Considero que o objecto artístico se expressa a si próprio dispensando que se lhe façam discursos de apresentação. Aqui, o que me foi pedido, foi de natureza muito diferente: que falasse a jusante do experiência da obra de arte, do contacto íntimo com ela e o partilhasse. Porém, não é possível veicular a partilha dessa experiência tão particular no número de caracteres de que aqui disponho. Assim, neste artigo de hoje, procurarei dar voz aos próprios artistas e à curadora da exposição.
Os artistas já tinham criado em 2015 uma primeira imagem da “Sala da Memória” inspirados na técnica retórica da Grécia Antiga ―mnemotécnica―que explora a associação mental entre palavras, lugares e imagens, para auxiliar um orador a recordar-se com exactidão do seu discurso. Quem viu a série de televisão O Mentalistateve oportunidade de ver várias vezes esta técnica em execução e até, em alguns episódios, o próprio personagem explicou como a utilizava. O nome provem de Mnemósine ―a deusa grega da memória ―mãe de todas as Musas. De facto, como se poderia criar sem recordar?
Susana Ventura descreve a peça-chave desta exibição do seguinte modo: “A Sala da Memória adquire uma tridimensionalidade cujas proporções encontram ressonância no corpo que é seduzido a habitá-la. As sedas translúcidas coloridas formam um véu em torno da estrutura que vai revelando diferentes graus de transparência de acordo com a luz da passagem do dia (o tempo como matéria de composição que altera a percepção da obra) convertendo os corpos ― o que habita o seu interior e os que se movem no exterior e vice-versa ― em sombras ou em imagens-movimento nativas, mais ou menos fugazes, mais ou menos nítidas. A sua arquitectura remete, ainda, para a casa tradicional japonesa, na qual a utilização dos painéis shojipermite criar um espaço de intimidade no interior da casa, desvelando a realidade e o mundo exterior segundo o desejado grau de translucidez. (…) É um espaço no qual o corpo poderá ser uno consigo mesmo e realizar um voo sobre si mesmo, pelo seu interior, como é praticado por várias técnicas de meditação da cultura oriental. Na Sala da Memória, esse movimento permite, ainda, ao corpo projectar, mentalmente, nos planos que o envolvem delicadamente, as memórias que carrega consigo.”
Além desta obra, estão expostos no piso térreo da galeria 7 quadros ao longo da parede lateral esquerda, alguns em guache sobre papel, outros são serigrafias. Para lá da Sala da Memória, ainda no piso térreo, exibe-se o vídeo Livro da Sede cujas imagens que se sucedem a branco e negro são acompanhadas pelo som produzido a partir de drones, da autoria de Pedro André. Susana Venturadiz-nos o seguinte sobre este vídeo: “as imagens evidenciam as oscilações infinitas das experiências do ser, uma variedade que cria um espaço de empatia e partilha. A colecção de imagens e a sua associação (montagem) permite refazer o passado e criar uma continuidade que se abre ao espectador (e, com este ao futuro). São imagens que percorrem diversos estados de alma ― de deleite, embriaguez, espanto e terror a um sono (ou sonho) profundo ― mostrando experiências banais e gestos triviais por entre manifestações extravagantes (…)”. Questionados sobre a escolha sonora, os artistas responderam-me com grande e amabilidade dizendo que pretendiam que o som “induzisse um estado imersivo, que a própria estrutura da sala da memória procura convocar, trazendo o corpo enquanto centro de experiência. Procurámos que o som acompanhasse ou conduzisse a uma sensação de transludência e ascendência, também sugerido pela estrutura em orientação contraluz.”
Poderemos, ou não, experimentar, sentir, aquilo que os artistas-criadores tiveram intenção de instigar no contemplador da obra. Porém, como sabemos, a obra de arte possui uma vida própria, não obedece aos criadores e não se esgota nos modos de acesso de nenhum público. Existe por si mesma, é expressão de si própria.
Uma escadaria iluminada com uma luz difusa conduz-nos ao piso superior onde numa sala totalmente escura é exibido um outro vídeo, também a preto e branco, intitulado Leite Transbordante. Assistimos, em formato e som aumentados, às formas que o leite vai adquirindo e sons que vai produzindo à medida que aquece, ferve e, por fim, se derrama. Percebe-se o reflexo de um vulto feminino e a certa altura sobrepõe-se ao som do leite o som de alguns passos. Os artistas consideram que aqui “o som existe enquanto textura e elemento de continuidade. É um elemento que ajuda a criar uma espécie de abóbada temporal, num plano em que se dividem duas métricas temporais que coabitam no fervedor (a do leite a ferver e a do reflexo da senhora). O som dos passos parecem quebrar a suspensão das duas acções, uma chamada ao tempo concreto.” Consideram também, justamente, que o reflexo da senhora no fervedor se constitui em elemento central deste vídeo, “em fragmentos /tempos suspensos, expressões que se desfiguram, como num espaço de espelhos convexos que distorcem o corpo e talvez a reminiscência da memória.” Também sobre esta obra, a curadora diz o seguinte: “apresenta um tempo suspenso ou de um presente contínuo no qual passado e futuro se justapõem e baralham na alternância da imagens, entre a temporalidade própria do leite que ferve e o grito mudo da mulher, que se estende infinita e lentamente, ao longo do filme, até ao momento último em que fica, definitivamente, preso.”
Foi-me concedido o enorme privilégio de poder permanecer muito tempo em solidão com estas obras. O tempo, como de forma incontornável nos diz Marguerite Yourcenar, é um grande escultor.Fomo-nos descobrindo mutuamente, progredindo cada vez mais para um espaço interior. O que escrevo noutro lugar provém desse contacto íntimo, singular, ao permanecer uma tarde e parte da noite na galeria. No entanto, creio que uma visita mesmo mais convencional também poderia propiciar uma experiência significativa. Para quem sentir afinidade com as questões relativas à percepção de diferentes modalidades de tempo, e à memória em particular, aqui fica a sugestão!
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de setembro)