Tiago levanta em esforço uma barra de halterofilismo com 65 kg de peso. O treino é só de meia-hora, mas bastante intenso. A T-shirt branca está suada do esforço feito naquela pequena divisão denominada zona de força, um espaço onde só cabe mais uma máquina com pesos. “Boa, vamos a isso”, incentiva o personal trainer, de máscara, ao contrário do aluno, com cerca de 40 anos.
É mais uma manhã no pequeno ginásio, situado no andar de um prédio em Lisboa. O dono e treinador decidiu manter a porta aberta, mesmo correndo o risco de ser denunciado. “Perguntei aos meus alunos se queriam continuar a ter treinos comigo durante o confinamento e 90% deles disseram que sim”, conta Gil (todos os nomes são fictícios), que garante cumprir todas as regras de distanciamento e higienização. “Há um risco aceite por todos. Mas temos um acordo: se, por exemplo, alguém tem tosse, não vem.”
Unhas arranjadas e massagens em Lisboa esta quarta-feira
Não teve ainda qualquer aluno positivo à covid, mas todas as semanas alguém fica em isolamento profilático. “O confinamento já devia ter acontecido há mais tempo. As pessoas exageraram nos contactos no Natal e na passagem de ano.” Gil sabe que o seu discurso entra em contradição com esta sua decisão de não fechar o ginásio, numa altura em que se batem todos os recordes de contágio. E tem a noção de que está a infringir a lei. Mas diz não ter outra opção. “Se pudesse, não estava em atividade. Tenho de contornar as regras para me conseguir manter à tona. Não tenho plano B. Este negócio é a minha vida.”
A fiscalização da PSP e da GNR aos espaços comerciais que têm de estar encerrados, como ginásios, restaurantes, cabeleireiros ou gabinetes de estética, tem-se intensificado. Dados do Ministério da Administração Interna, revelados ao Expresso, mostram que entre os dias 8 e 19 foram fechados 65 estabelecimentos por incumprimento das normas. “Os encerramentos vão crescer bastante nos próximos dias”, diz fonte da PSP. Esta força policial já anunciou que vai chamar os agentes pré-aposentados para fiscalizar as medidas do estado de emergência.
JUIZ E PADRE NA BARBEARIA
A barbearia de Paulo, nos arredores de Lisboa, não pôs as navalhas e tesouras em repouso. As marcações são feitas por telefone e, para não levantar suspeitas, a montra está tapada com plástico preto. Na lista para os próximos dias está um juiz e um dos últimos clientes foi um padre, que abençoou esta prática ilegal. “Ele ligou-me a perguntar se o atendia. Respondi-lhe: ‘Cortar-lhe o cabelo, senhor padre? É proibido, mas se o senhor padre alinhar é na boa.’”
O profissional, pai de dois filhos, conta-nos que tem muitas despesas fixas e que não pode dar-se ao luxo de ir ao fundo. Só pela barbearia paga €700 de renda, mais água, luz e gás, outros tantos vão para a casa onde mora e ainda tem de garantir o aluguer e despesas do filho mais velho, que está a estudar numa universidade fora de Lisboa. “E sem ganhar não dá. Porque é que uma barbearia não pode estar aberta, com marcações, tudo desinfetado e máscaras? Não é mais perigoso do que 40 pessoas na fila do supermercado.”
Apesar de não parar, Paulo reduziu o horário e agora atende apenas na parte da manhã, para não chamar a atenção. “Se puder ganhar pelo menos 50 euros por dia, é ótimo, para me aguentar.” E se a polícia ou inspeção lhe bater à porta? “Não abro, piro-me pelas traseiras e peço ao vizinho para me deixar sair pela casa dele. Trabalho aqui há 20 anos; a esquadra da polícia está aqui há bem menos.”
“A clandestinidade é algo que ninguém consegue controlar, mas nós apelamos sempre ao cumprimento das regras para salvar vidas”, diz Miguel Cabral, presidente da Associação de Cabeleireiros. Porém, reconhece que “a parte financeira é horrível” e está a levar vários cabeleireiros ao “desespero” e à “indignação”.
Num outro prédio de Lisboa, Alice recebe as clientes em segredo no ateliê de massagens. “Tenho receio de ser denunciada à polícia, principalmente pelos vizinhos mais idosos, que são muito metediços.” Tem, por isso, agido com a máxima discrição. Não tem publicitado os serviços, mas se os clientes lhe ligam a perguntar se continua no ativo responde afirmativamente. E recebe-os no gabinete ou vai ao domicílio, com todas as precauções. “Devia confinar por respeito a mim e aos outros. Mas fiz isso da primeira vez, em março e abril, e concluí que as ajudas do Governo não dão para sobreviver.”
“Não estou preocupada com a polícia”, diz, por sua vez, Maria, esteticista brasileira a viver em Portugal, que também decidiu contornar as regras por necessidade. Continua a deslocar-se a casa das clientes para lhes arranjar as unhas. Apesar de o negócio “estar fraco”, esta quarta-feira uma das clientes mais antigas voltou a requisitar os seus serviços. E lá foi Maria para um dos bairros mais antigos de Lisboa com o seu kit de beleza. “Num cenário em que nada é perfeito, esta é a minha forma de não deixar morrer as pessoas e os seus pequenos negócios”, assume a cliente.
A presidente da Associação Nacional de Esteticismo Profissional, Daniela Oliveira, garante não ter conhecimento deste tipo de casos, mas diz compreender “algumas pessoas, que estão a passar necessidades”.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso