O cérebro tem uma forma de controlar a actividade nervosa garantindo que, à medida que aprendemos coisas novas, consolidamos as nossas memórias. Se assim não fosse, acabaria por ficar “saturado”, perdendo a capacidade de armazenar qualquer informação. Mas essa exigência de estabilidade não estará, por sua vez, a limitar as nossas faculdades de memorização e aprendizagem? Um estudo fornece agora novos elementos para resolver este enigma.
A função essencial do cérebro é permitir que os organismos aprendam e se adaptem ao mundo que os rodeia. Para fazer isso, o cérebro é literalmente capaz de alterar as ligações, ou sinapses, entre os neurónios, reforçando padrões relevantes de actividade neural de forma a armazenar informação. A existência deste processo, denominado “plasticidade cerebral”, já é conhecida há algum tempo.
Ao nível das sinapses, existem dois tipos diferentes de plasticidade cerebral. Um deles é a “plasticidade de Hebb” (do nome do pioneiro das neurociências Donald Hebb), que permite efectivamente registar informação nas sinapses. O outro tipo, descoberto mais recentemente, é a “plasticidade sináptica homeostática” (PSH). A sua função, tal como acontece com outros processos “homeostáticos” no organismo – a manutenção de uma temperatura corporal constante é disso um exemplo – é manter a estabilidade do cérebro. É a PSH que garante que o cérebro não se torne demasiado activo (como na epilepsia) ou demasiado inactivo (o que pode acontecer na doença de Alzheimer devido à perda de sinapses).
No entanto, pouco se sabe sobre como estes dois tipos de plasticidade interagem de facto no cérebro. Agora, uma equipa de neurocientistas do Centro Champalimaud, em Lisboa, começou a desvendar os processos que ocorrem nas sinapses quando os dois mecanismos se sobrepõem. Os seus resultados foram publicados na revista iScience (https://doi.org/10.1016/j.isci.2018.09.015).
“Em teoria, os dois tipos de plasticidade funcionam como forças opostas”, diz Anna Hobbiss, primeira autora do novo estudo, liderado por Inbal Israely. “A plasticidade de Hebb corresponde à actividade sináptica que incita as sinapses a tornarem-se mais fortes, enquanto a PHS torna as sinapses mais fracas. Nós quisemos perceber, ao nível celular e molecular, como as sinapses lidam com estas duas forças quando elas estão presentes simultaneamente.”
Neste estudo, os autores inesperadamente mostraram que, ao contrário do que seria de esperar, a PHS promove a plasticidade de Hebb, influenciando, portanto, a criação de memórias e a aprendizagem. Isso significa que estes dois tipos de plasticidade “poderão na realidade não ser tão distintos, mas sim conjugarem os seus efeitos numa mesma sinapse”, diz Israely.
O objectivo da equipa consistia em determinar as mudanças de tamanho de minúsculas estruturas, chamadas espinhas dendríticas, que recebem sinais de outros neurónios através da sinapse. O tamanho destas espinhas muda conforme a força da ligação sináptica.
No novo estudo, os cientistas analisaram células do hipocampo de ratinhos (o hipocampo é uma parte do cérebro que é crucial para a aprendizagem). Nas suas experiências, bloquearam a actividade nas células ao introduzir uma potente neurotoxina, a tetrodotoxina, simulando assim a perda de actividade neuronal que atinge uma parte do cérebro (“basta imaginar uma cegueira repentina, que resulta na perda de sinais dos olhos para o cérebro”, diz Hobbiss).
Quarenta e oito horas depois, simularam uma pequena recuperação de actividade neuronal ao nível de apenas uma sinapse, ao libertar moléculas de um neurotransmissor – o glutamato –, numa única espinha de um único neurónio. Isto foi possível graças a uma tecnologia laser de ponta, chamada microscopia de dois fotões, que lhes permitiu visualizar e estimular individualmente as espinhas dendríticas com grande precisão.
Durante a experiência, os cientistas seguiram de perto o que acontecia às espinhas – visualizando várias alterações anatómicas. Primeiro, o silenciamento total da atividade neural causou um aumento do volume das espinhas dendríticas. “As espinhas são como minúsculos microfones que, perante o silêncio, aumentam o ‘volume’ para tentar captar os mais ténues ruídos”, explica Hobbiss.
A seguir, ativaram individualmente as espinhas com pulsos de glutamato e seguiram-nas durante duas horas. Uma das hipóteses era que as espinhas seriam incapazes de crescer mais, visto que o seu ‘volume’ estava no máximo. Mas aconteceu exatamente o contrário: as espinhas continuaram a crescer – e as espinhas mais pequenas foram as que mais cresceram.
Por último, os autores viram que as espinhas vizinhas à espinha ativada também tinham crescido, apesar de a experiência ter ativado apenas uma espinha de cada vez. “Descobrimos que, após ausência de atividade, outras espinhas na vizinhança também tinham crescido, tornando ainda maior a sensibilidade da célula à transmissão neuronal”, diz Hobbiss. “As células tornam-se mais sensíveis, mais suscetíveis de codificar informação. Como se de ‘amplificadores’ se tratasse”, acrescenta.
“O facto de as espinhas vizinhas crescerem ao mesmo tempo que a espinha ativa significa que a plasticidade homeostática altera uma das características fundamentais do armazenamento de informação, que é o facto de a plasticidade ficar limitada ao local de entrada de informação”, explica Israely. “Portanto, nesse sentido, os diferentes mecanismos de plasticidade que actuam sobre os neurónios são capazes de colaborar para mudar quais e quantos canais de entrada respondem a um estímulo. Acho que este é um resultado muito importante do nosso estudo.”
Conjuntamente, estes resultados mostram que a plasticidade homeostática pode de facto aumentar a plasticidade de Hebb, o tipo de plasticidade necessário para armazenar informação. “O nosso trabalho acrescenta uma peça ao puzzle de como o cérebro desempenha uma das suas tarefas fundamentais: ser capaz de codificar informação e ao mesmo tempo manter um nível estável de atividade”, conclui Hobbiss.
A desregulação da plasticidade homeostática – a componente estabilizadora – começa a ser relacionada com a saúde humana, em particular com as perturbações do desenvolvimento neural tais como as síndromes do X frágil e de Rett, mas também com doenças neurodegenerativas como a doença de Alzheimer. “Talvez seja este equilíbrio que nos torna capazes de aprender informações novas e de assegurar a estabilidade desse conhecimento ao longo de uma vida”, diz Israely.
Centro Champalimaud
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