A sala de cinema nasceu em 1904 e teve várias vidas ao longo de mais de um século. Chamou-se Salão Ideal, Piolho do Loreto (está localizado na Rua do Loreto, ao Chiado), Cine Camões e Cine Paraíso.
Nascido num edifício do século XIX, o Ideal reabrirá portas no final do verão pela mão do produtor Pedro Borges, que pretende recuperar o perfil de sala de cinema de bairro, mas com uma programação centrada no cinema independente.
O Salão Ideal apareceu numa altura em que “o espectáculo de cinema não era uma atracção autónoma”. “Exibiam-se curtas-metragens no meio de outras variedades, de circo. Esta foi a primeira sala a ter o cinema como uma atracção por si só”, afirmou à agência Lusa a investigadora Maria do Carmo Piçarra.
A jornalista acaba de publicar um livro – “O cinema Ideal e a Casa da Imprensa - 110 anos de filmes” – que traça a história do Cinema Ideal desde 1904 e que recupera o percurso da Casa da Imprensa, proprietária do edifício do cinema, e a ligação desta à exibição e divulgação cinematográfica.
“O Cinema Ideal era um cinema popular, frequentado por pessoas modestas ali do bairro, por ardinas, marinheiros, e foi um marco na exibição de cinema em salões populares”, afirmou.
Quando o Cinema Ideal abriu, a prática da arte cinematográfica era ainda recente. As experiências de cinematógrafo dos irmãos Lumière aconteceram em Paris em 1895.
“O Ideal esteve na vanguarda e foi lá que surgiu, iniciada por Júlio Costa [pioneiro do cinema português], a primeira companhia dramática que dava voz aos filmes mudos”, escreve a autora.
Foi através dessa inovação que o ator António Silva, um dos mais conhecidos comediantes do cinema português, se terá iniciado na sétima arte. Segundo Maria do Carmo Piçarra, o Salão Ideal recorria aos Bombeiros Voluntários da Ajuda para sonorizarem os filmes mudos e António Silva foi, na época, comandante dessa corporação de bombeiros.
Ao longo das décadas seguintes, o Cinema Ideal perdeu fulgor, pela concorrência com outras salas mais nobres da capital, e manteve o perfil mais popular, de segunda linha, frequentado sobretudo por homens — os lavabos para mulheres só foram instalados nos anos de 1940.
O cinema sofreu várias remodelações e “passou a explorar o novo filão cinematográfico trazido pela liberdade”, a partir de 1974. “O sexo era servido sem grande discrição e alternava com filmes de pancadaria e cinema indiano”, descreve o livro.
O declínio nas décadas seguintes deu-se, segundo a autora, ao “processo de encerramento de salas de cinema em todo o país”.
No final do ano passado, quando foi anunciada a recuperação do Cinema Ideal, o presidente da Casa da Imprensa, Goulart Machado, afirmava que a associação mutualista não estava satisfeita com o perfil do cinema e que procurava uma solução “mais consentânea” com os seus estatutos.
É que a Casa da Imprensa, segundo Maria do Carmo Piçarra, “teve um papel extraordinário” e foi pioneira na organização de festivais de cinema, nos anos 1960, quando se vivia a vaga de novo cinema em Portugal e na Europa.
Apesar de ter promovido a exibição do melhor que se fazia a nível europeu, e de “ter lutado para que os filmes não fossem censurados”, a Casa da Imprensa nunca fez exploração directa do Cinema Ideal.
Após as obras, do antigo salão não restará praticamente nada, a não ser a localização. O novo Cinema Ideal terá cerca de 200 lugares, exibição digital, uma cafetaria e uma livraria.
“É uma abertura fundamental, dada a inexistência de salas de cinema com programação autónoma em Lisboa. É um esforço quase quixotesco e quero perceber como é que nós, lisboetas, vamos responder a isto. Não basta ter uma programação, é preciso que tenha frequência”, afirmou Maria do Carmo Piçarra.
(Agência Lusa)