O português Rafael Pereira não consegue deixar de ser solteiro: apaixonou-se por uma taiwanesa, mas o reconhecimento matrimonial não avança por Portugal não reconhecer este território asiático, num caso semelhante aos de muitos conterrâneos ali residentes.
Na ilha que a China reivindica como uma província sua, o número de portugueses residentes oscila entre os 200 e os 300, que muitas vezes se veem obrigados a ir a Macau para questões processuais, numa distância semelhante à que separa Lisboa de Paris.
Sem serviços consulares em Taiwan, Rafael relata à Lusa como tem procurado reunir os documentos, seus e da sua noiva, que são exigidos para efetivar o casamento, sucessivamente adiado por não haver relações diplomáticas entre Portugal e o lugar que os marinheiros portugueses batizaram de Formosa no século XVI.
Os esforços inglórios são contados à mesa do restaurante português em Taipé de Carlos Couto, cuja carreira na arquitetura o fez trocar, há mais de 40 anos, Portugal por Macau. Hoje em dia, Rafael divide a semana entre aquela ex-colónia portuguesa e atual região administrativa especial da China e Taiwan.
Com o desafio da construção da pista de Fórmula 1 de Taipé, o cliente de Carlos acabou, entre perguntas sobre vinhos portugueses, por provocar um alargamento do ‘portfólio’ das atividades do português.
Esse portfólio inclui atualmente centenas de vinhos das 14 regiões nacionais demarcadas, além do restaurante Tuga – que também existe em Singapura – e do muito recente investimento na torra de café proveniente dos locais onde os marinheiros portugueses estiveram, mas agora com a “melhor máquina do mundo, que é de tecnologia taiwanesa”.
Fazendo eco do lamento do chef português do Tuga, Nelson Santos, da impossibilidade de importar produtos – como sangue, o que impede a confeção de morcelas – o dono do restaurante exemplifica como das 63 amostras solicitadas de pão a Portugal só viu autorizadas a chegar-lhes “15 ou 20 e depois de um ano”. “Tudo tem de passar através do Governo de Portugal”, o que traduz muitas contas de somar ao tempo e ao dinheiro gastos, garante.
Na cozinha que lidera, Nelson, convencido a mudar de continente por respostas que lhe agradaram numa videochamada, “aventura-se nos enchidos” e garante Natais com filhoses e bolo-rei. Já tirou, porém, do menu o pudim abade de Priscos e o arroz doce, por serem “demasiado doces” para o gosto asiático.
Hoje há bolinhas de alheira, que são apreciados pelo casal Carla Ferreira e Pedro Silva, que por motivos profissionais mudam de país a cada cinco a seis anos. Em Taiwan ‘inauguraram’ problemas com as finanças porque tentam transferir a residência fiscal do Brasil para Taiwan, o que tem incluído pedidos de documentos reconhecidos por notários, traduzidos de forma autenticada, num circuito entre várias entidades estatais.
A tensão entre a China e Taiwan é sentida regularmente, comercial ou até diplomaticamente, como aconteceu em agosto quando foi divulgado oficialmente que um funcionário da diplomacia taiwanesa, que deveria integrar a delegação de Macau, não obteve o visto ao recusar assinar a declaração sobre o reconhecimento do princípio ‘Uma só China’.
O governo de Macau manifestou o “mais firme repúdio” por Taipé “distorcer os factos e difamar” a região, enquanto o Conselho de Assuntos Continentais de Taiwan garantia não poder concordar com o principio de ‘Uma só China’.
Taiwan – para onde o exército nacionalista chinês se retirou depois de ter sido derrotado pelas tropas comunistas na guerra civil – é governada autonomamente desde 1949. O atual executivo tem reiterado a defesa do ‘status quo’, enquanto Pequim garante que a “reunificação” é “inevitável”, não excluindo o recurso à força.
Com exceção de 11 países e o Vaticano, Taiwan não tem reconhecimento internacional, incluindo das Nações Unidas.
As dificuldades agravaram-se com a pandemia do Covid-19 e todos os portugueses reunidos à mesa do restaurante lamentam como a política do país se sobrepõe ao interesse dos cidadãos.
Uma solução “prática, que é o que é preciso”, argumentam, seria Portugal abrir uma representação em Taiwan ou possibilitar recorrer a uma representação de outro país europeu ou mesmo da União Europeia.
A Lusa não obteve, até ao momento, resposta do Ministério dos Negócios Estrangeiros português sobre eventuais alterações aos aspetos diplomáticos, assim como a procedimentos numa eventual situação de emergência envolvendo portugueses num território assolado por sismos e tufões.
Rafael Pereira relata também na primeira pessoa o muito longo e imprevisível circuito que teve de percorrer desde 2020 para ver reconhecido o seu casamento com uma taiwanesa. O processo incluiu uma ida ao Japão, já que a sua mulher “prefere evitar entrar em qualquer território sob o controlo da República Popular da China”.
Paula Lagarto, da agência Lusa (A Lusa viajou a convite do governo de Taiwan)
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