Morreu sem nunca ter sabido a verdade. Embrulhada na tristeza de não mais ter visto aquele rosto iluminado do homem que lhe lembrava o pai que nunca teve, nem a mãe que a abandonou por desamor ou desespero!
Maria Francisca foi enjeitada – como se dizia – mal acabara de nascer. E carregou por toda a vida o fardo nos ombros e a amargura no peito de nunca ter conhecido o colo e o afago de uma mãe. Nem o braço e a voz de um pai protetor.
Os pais abandonaram-na com seis dias de vida, no sítio da ribeirinha, Almodôvar, onde foi encontrada por Maria Anica. Ficou no hospício da vila, desconhecendo-se onde e com quem foi criada e em que data e com que idade se mudou para a aldeia.
Ficou a saber-se pela própria Maria Francisca, entretanto já casada, que certo dia foi chamada a casa de uma tal Mariazinha, na aldeia, mas que antes vivera no Monte da Casa Velha, onde um senhor bem vestido e bem parecido pediu para a conhecer.
Segundo relato transmitido a terceiros por Maria Francisca, ela terá ficado segura de que se tratava do seu próprio pai, não apenas pelo interesse por ele manifestado, com tanta insistência em conhecer uma pessoa de vida simples e obscura como a dela, mas, sobretudo, por ter visto no seu rosto traços e expressões que ela vislumbrava em si mesma como se se mirasse no espelho da sua própria alma.
O constrangimento e a sua origem humilde nunca a levaram a procurar descobrir quem era aquele homem misterioso. Nem ao menos tentar junto de Mariazinha colher alguma informação que a ajudasse a dar algum sentido à sua história de vida. Dizia-se pela aldeia, sem certezas, que se tratava de um “conde”, gente com muitos ares de importância, abotoando sobranceria.
Mesmo que se vivessem tempos de fim de regime – soavam já por toda a charneca os tambores republicanos -, imperava ainda o domínio sufocante de uma aristocracia rural e latifundiária. Rica de tudo, mas pobre em amor e compaixão. Fosse como fosse, pela forma elegante de se vestir, era, certamente, homem de muitas posses.
Do que lhe disse e quis saber, pouco ou nada passou cá para fora. Afinal, Maria, que se fez mulher ainda menina, ganhara a sabedoria que a mandava calar a “vergonha” social, de um pecado sem culpa que a castigou por toda a vida.
Por essa altura, Maria Francisca já havia casado com um homem bom – Manuel dos Santos – com quem teve duas meninas e um rapaz. Para José, o mais novo, guardava ela os seus maiores desvelos e cuidados. Às escondidas do marido entregava ao miúdo, então já moço namoradeiro, o pouco que lhe sobrava de uma vida de poucas sobras.
Quis fazer dele um homem com valores. Contratou uma mulher para o ensinar a ler e a escrever, a quem lhe pagava cinco mil reis. Uma fortuna à época.
Morreu sem nunca ter sabido a verdade, embrulhada na tristeza de não mais ter visto aquele rosto iluminado do homem que lhe lembrava o pai que nunca teve, nem a mãe que a abandonou por desamor ou desespero!
Onde estiver, ao lado do seu menino, que cresceu e também foi pai de muitos meninos, Maria Francisca sabe que nunca morreu. Porque a morte só existe quando se arquiva a memória e apenas fica o esquecimento.
Caçadores de Histórias
Ao contrário do que se pensa, os casos de abandono de crianças não são um assunto do passado em que os recém-nascidos eram deixados na roda dos conventos ou junto às portas de pessoas ricas. Basta ler os jornais para perceber que o mesmo, por vezes com contornos bem mais graves, se continua a passar hoje debaixo dos nossos olhos. R.S.
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